Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Por que estamos entregando tanto

Vindos do inglês, novos usos de entregar entregam ótima performance

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É impressionante a entrega com que o verbo "entregar" se entregou neste século aos falantes brasileiros. Ou terá sido o contrário? O fato é que entregar passou a entregar mais informação do que nunca em sua história.

Não que, nascido no século 13 do latim mastigado "integrare" (restaurar), entregasse pouco antes. Já tínhamos o meia de fôlego raro que se entregava ao jogo e o zagueiro que entregava o ouro, e às vezes até a paçoca.

Corisco que não se entregava, o assaltante que entregava o comparsa e o tímido que se entregava pela tremedeira que o acometia ao lado da amada já compartilhavam sentidos ligados a derrota, traição, rendição.

Motoboy com sua moto em uma entrega
Com a adoção providencial de delivery, parece que a dúvida entre entrega a domicílio e em domicílio está em vias de superação - Rula Rouhana - 24.jul.23/Reuters

Tampouco nos faltavam atrizes pornô que se entregavam a entregadores de pizza e, claro, os entregadores em geral, encarregados do trampo de fazer as coisas se deslocarem pelo mundo. Ainda nem mencionei o entreguismo, prática de vender barato as riquezas nacionais.

Mas isso tudo foi antes, quando ainda se falava de entrega a domicílio (ou em domicílio, debate que abordei aqui outro dia). Hoje, com a adoção providencial de delivery, o problema parece em vias de superação.

Deliver (entregar em inglês, palavra ligada ao sentido de libertar) é, claro, a matriz das novas aplicações que entregar ganhou no português brasileiro.

O programa entrega muito entretenimento. Como fazer sua equipe entregar resultados? Anitta entrega performance perfeita. O produto X entrega excelência. Manifestação entrega o (público) que promete.

Esses usos não existiam, ou existiam marginalmente, algumas décadas atrás. O que usávamos então? Verbos como dar, ter, trazer, apresentar, oferecer, proporcionar. É só experimentá-los nos exemplos do parágrafo acima para ter uma ideia de como se falava por aqui faz pouco tempo.

Como outros anglicismos recentes, o uso ampliado de entregar parece ter chegado à língua comum vindo das bandas do papo corporativo, marketeiro e tecnológico. O mesmo de onde saíram espécimes como printar, performar, popular (povoar), escalar (ganhar escala), pontuar (apontar, ponderar).

O nome das novas acepções de entregar é estrangeirismo semântico, aquele tipo em que uma língua de fora faz contribuições ao cardápio de sentidos de uma palavra do vernáculo.

Não há nada que se possa — e muito menos que se deva — fazer a respeito disso. Estrangeirismos semânticos são só uma das formas que as línguas têm de se petiscarem umas às outras. Tomar posição purista contra esse fato é tentar aprisionar a maresia com rede de borboleta.

Ah, mas há exageros? Minha Nossa, sim! Sempre se pode rir deles quando passarem de certos limites. A pessoa que endereça um problema parece merecer algum tipo de punição. No entanto, de modo geral é vida que segue. A maioria dos estrangeirismos, ou pelo menos dos bons, vira gente de casa em duas gerações.

Mas é preciso ter cuidado. Quando a imitação do delivery dá numa frase como "É um comediante que sabe entregar a piada", acredito que uma importante fronteira seja cruzada. Mas que fronteira será? De gosto? De autoestima? De noção?

Só sei que, em minha humilde opinião de espectador, não cabe a um comediante me entregar piada nenhuma. Nem tirá-la de um grande cubo vermelho e depositá-la no palco à minha frente, nem me contar antecipadamente o segredo do chiste, sabotando sua graça e traindo a confiança do coitado.

Prefiro que só contem a piada mesmo. Não prometo rir, mas é um começo.

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