Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu Portugal

Corram, é o sabichão preposicional!

Mostre esta coluna a quem lhe disser que entrega a domicílio está errado

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Agradeço ao leitor que, na área de comentários da coluna, emendou o "a rigor" que eu tinha escrito para "em rigor". Me deu a deixa pra falar de uma das mais insidiosas formas de sabichonismo, o preposicional.

Como alguns dos leitores da coluna já devem estar enjoados de saber, chamo de sabichonismo o hábito de apontar na fala e na escrita dos outros "erros de português" que não existem, ou melhor, que só existem porque os sabichões fazem muita questão.

Não gosto do sabichonismo. Custa caro à inteligência linguística coletiva, deixa os falantes inseguros e os convence de que o mais importante numa língua é ela ser um coletivo de pegadinhas.

foto mostra página página de dicionário aberto, é possível que há várias páginas anteriores por baixo
Dicionário Aurélio - Fabio Braga - 25.set.15/Folhapress

A bronca é com a doença, não com os doentes. Sabichões são vítimas, eu mesmo por pouco não virei um e sei. O contágio é como o dos zumbis, cada mordida de sabichão cria um novo.

São quase sempre recuperáveis. Talvez não saibam o que Celso Cunha (1917-1989) escreveu: "A rigor, o adjetivo só existe referido a um substantivo". Isso: "a rigor", não "em". Cunha era um normativo, um conservador, mas como todo bom gramático não alimentava bizantinices.

O sabichonismo prep (para abreviar) deve muito aos puristas da língua portuguesa, caçadores inclementes de ecos do francês, idioma imperialista da época. A preposição "a" foi um dos seus alvos preferidos, e tome prescrição de locuções artificiosas como "em rigor", "em cores", "em longo prazo" etc.

Sim, alguns desses casos de "a" podem ter influência do francês (e daí), mas outros não. No caso da TV a cores, a acusação de galicismo não se sustenta em tribunal algum – os franceses dizem "en couleurs".

Contudo, o caso mais famoso de sabichonismo prep não parece ter a ver com caçadores de estrangeirismos. A recomendação de "entrega em domicílio" é um enrosco doméstico mesmo.

Escreveu sobre "entrega a domicílio" o ultraconservador Napoleão Mendes de Almeida (1911-1998), gramático popular em seu tempo: "Expressão espúria, conquanto generalizada; emende-se para ‘entregas em domicílio’, pois a entrega é ‘em’ um lugar".

O argumento não é lá essas coisas. Finge que preposições não têm certo grau de volatilidade e faz uma leitura estreita do critério espacial —como o entregador não entra em casa, fica à porta, o raciocínio oposto seria igualmente válido.

O problema maior é o desprezo a um uso consagrado que não afronta a gramática. Napoleão, vá lá. Mais triste é ver que um dicionário como o Houaiss está nessa até hoje.

Alguma flexibilidade talvez fosse recomendável. Refletiria a aprovação, por outros gramáticos, da forma que o uso escolheu. Domingos Paschoal Cegalla (1920-2013) afirma: "Deve-se observar que, embora correta, a locução ‘em domicílio’ se divorcia da língua corrente".

Em Portugal o "a" está assimilado. Lá encrencam é com a falta do artigo: deveríamos dizer "entrega ao domicílio" ou "no domicílio". Temos a quem puxar.

Segundo uma velha máxima, língua é um dialeto com exército e marinha. O ultraconservadorismo que sustenta a visão sabichona não chega a tal poderio, mas tem uma dimensão institucional e todo um mercado editorial e de ensino em torno dos concursos públicos.

Não é simples entender a persistência de frivolidades como o sabichonismo na paisagem cultural brasileira. Parece provável que entre na equação certo amor mórbido pela bacharelice, pelo verbo ornamental como emblema de distinção numa sociedade violentamente dividida.

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