Silvio Almeida

Advogado, professor visitante da Universidade de Columbia, em Nova York, e presidente do Instituto Luiz Gama.

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Descrição de chapéu Folhajus

Olimpíadas, superação e vida precária

Fantasia da superação serve para justificar um país que abandona os pobres

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Se há duas coisas que nunca se divorciaram são o esporte e a política. Não falo apenas de como a prática esportiva sempre foi utilizada por movimentos políticos e governos para marcar posições, mas de algo maior: falo do esporte como elemento constitutivo do imaginário social, como alegoria das relações de poder e como projeção de potencialidades individuais e coletivas.

Os diferentes significados que o esporte teve ao longo da história são o índice de como transformações socioeconômicas afetam nossa concepção de “humanidade”.

Como afirma o historiador Johan Huizinga em seu livro “Homo Ludens”, o ato de jogar, “seja qual for sua essência, não é material” e para ele “ultrapassa, mesmo no mundo animal, os limites da realidade física”.

Huizinga conclui que este aspecto imaterial do jogo —o elemento lúdico— é originário daquilo que chamamos de cultura. A cultura se materializa na forma de um jogo, pois o jogo é, ao mesmo tempo, ritual e espetáculo, sagrado e profano, regra e imprevisibilidade, trabalho e divertimento, brincadeira e guerra.

Trago Huizinga a fim de iniciar uma reflexão de como os Jogos Olímpicos permitem-nos uma interessante leitura sobre a política em nosso mundo. E quando falo de Jogos Olímpicos me refiro não apenas ao que acontece nas quadras, no campo ou nas pistas: trato do “jogo” de forma ampla, algo que envolve a cobertura de imprensa, as disputas políticas e econômicas e, de modo muito particular, a maneira
com que atletas e torcidas manifestam disputas ideológicas.

Quero olhar para o Brasil nesta reflexão. Chama a atenção o esforço para que cada medalha olímpica seja celebrada como uma conquista da superação individual.

A medalha parece se tornar ainda mais saborosa quando o pescoço que a carrega for de alguém que não teve apoio, patrocínio ou que treinou em condições precárias. No fim das contas, esse atleta serve como pretexto para a defesa de que nada é mais decisivo para o bom resultado de um atleta do que o esforço individual.

Mas não foi a precariedade da vida que fez os campeões olímpicos. Pessoas como Rebeca Andrade e Italo Ferreira se tornaram campeãs apesar das dificuldades que tiveram na vida, e não por conta dessas dificuldades. São trajetórias singulares e que muito nos orgulham, mas que, diante do que o país oferece à maioria dos atletas, confirmam a exceção, e não a regra.

Basta ver o quadro geral de medalhas. Os líderes China e EUA investem pesadamente na formação de atletas. Por trás das inúmeras medalhas desses países há políticas de Estado que orientam a articulação entre os setores público e privado, tanto na formação dos atletas como no desenvolvimento de tecnologias esportivas.

Ainda que sejam louvados os feitos individuais, o que se tem, de verdade, é o conjunto da sociedade e o Estado atuando de forma decisiva no desenvolvimento do esporte.

Por outro lado, é igualmente revelador perceber a forma como a mentalidade embebida de darwinismo social projeta os atletas que não ganham medalhas. No caso brasileiro, quem não subiu no pódio é submetido a um ritual de expiação em que geralmente pede desculpas à nação.

Assim, a culpa pela derrota é ou do atleta, ou do “juiz ladrão”. De qualquer modo, tem-se a reafirmação do indivíduo como único responsável pelo próprio destino (e o de todo um país). É assombroso como naturalizamos a lógica de que a vida, inclusive o esporte, é um grande mercado e que o mercado é o lugar da guerra. É assustadora a maneira como espetacularizamos o sofrimento.

No tipo de jogo que marca cultura do tempo presente, não há apenas atletas, mas mercadorias; não há apenas torcedores, mas apostadores ou, talvez, para uma linguagem mais adequada aos nosso tempos, “piramideiros”. Se Huizinga está certo e a cultura é jogo, o Brasil virou um grande cassino.

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