Tanto quanto as ameaças de golpe do presidente da República e seus apoiadores, chama a atenção a facilidade com que o bolsonarismo vem sequestrando o debate nacional.
Estamos praticamente a um ano do bicentenário da Independência do Brasil. Em outras condições, seria o momento para a preparação de grandes debates sobre o passado, presente e futuro do país. Mas o que hoje o país experimenta é o desmantelamento progressivo de suas instituições, a destruição acelerada de sua economia e a visível pauperização de seu povo.
E mesmo diante desse estado de coisas, a impressão que se tem é que a única discussão possível é acerca da possibilidade de um golpe de Estado no dia 7 de Setembro deste ano.
Não estou minimizando as constantes ameaças de golpe e seus efeitos nefastos sobre o país. Tampouco desprezo o risco de ações violentas que possam vir a ser praticadas pelos seguidores do presidente. O que quero ressaltar é a eficiência com que o bolsonarismo tem cumprido a missão de bloquear os debates acerca dos problemas nacionais.
A pergunta é: de onde vem esta eficiência, este poder de prestidigitação? Reputo que são dois os fatores que podem, eventualmente, nos encaminhar a uma explicação.
O primeiro fator é um fetiche em torno de noções idealistas e moralistas de democracia e autoritarismo. Algumas pessoas sem compreensão da complexidade da luta politica e apavoradas com a facilidade com que o presidente e seus asseclas amedrontam o país acham que isso se deve a uma atávica passividade do povo brasileiro.
Na verdade, a maior parte do povo brasileiro se opõe diária e sistematicamente à violência e ao autoritarismo, que não é exclusividade deste governo e nem começou agora.
O problema é que a imposição de bloqueios a uma efetiva participação popular na vida política no mais das vezes tem sido possível por obra e graça de instituições que neste momento são diretamente ameaçadas pelo bolsonarismo, como é o caso do Judiciário e de parte da imprensa.
Portanto, ao se denunciar o “autoritarismo” é importante que se diga que não se trata de um fenômeno recente, que não se restringe à quadra atual e que também não irradia apenas do Palácio do Planalto. Por mais que seja necessário defender a democracia, especialmente em períodos de ascensão do fascismo, as pessoas não irão se mobilizar para defender o que não entendem, não sentem ou que acreditam não existir.
O segundo fator é que a mobilização contra o bolsonarismo tem seu limite na realidade econômica. Jair Bolsonaro é o “malvado favorito” de alguns setores da economia nacional justamente porque não tem modos; ele detém, portanto, as condições subjetivas para literalmente “enfiar goela abaixo” de trabalhadores e minorias pautas de devastação nacional como o marco temporal na demarcação de terras indígenas, a reforma trabalhista e a desregulação das normas de proteção ao meio ambiente, coisas que gente muita fina e elegante até deseja, mas que não tem coragem de assumir.
A discordância que alguns setores podem ter com o bolsonarismo é puramente estético. Há, inclusive, os que denunciam o autoritarismo a partir de doutrinas estrangeiras, mas que eloquentemente se calam diante do desastre social.
Com efeito, são os interesses de classe que explicam a hesitação de parte do empresariado em abandonar o governo, ainda que o “bolsoguedismo” só tenha produzido fome, peste, destruição e trevas (literalmente).
O fetiche em noções a-históricas de autoritarismo e democracia e a ocultação da questão econômica talvez expliquem a redução do debate político a eleições e cartas de repúdio. É um governo autoritário? É. É um governo que corrói as instituições? Sim, não há dúvida. Mas para ser realmente compreendido e confrontado, o bolsonarismo tem que ser encarado, fundamentalmente, como um sintoma da economia política e não apenas como falha moral ou mau funcionamento das instituições.
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