Suzana Herculano-Houzel

Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

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Suzana Herculano-Houzel

Toda forma de aprendizado se aproveita

Mesmo há anos sem tocar flauta, retorno não foi difícil, talvez graças ao violão

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Fazia mais de uma década que eu não tirava a flauta do estojo para mais do que uma passada rápida, pró-forma. Mas dois amigos novos, um músico profissional no circuito de Nashville, o outro cineasta bem versado em música clássica, me inspiraram a voltar a tocar o que, afinal, era o meu melhor instrumento.

Minha flauta de estudante, presente do meu pai quando eu tinha uns 12 anos, ainda dava para o gasto, mas resolvi que era, finalmente, hora de fazer upgrade. Nashville, Cidade da Música (auto-proclamada), não me decepcionou: em uma hora eu estava de volta em casa com uma nova flauta, prateada, usada, mas em perfeitas condições —e com teclas tão mais sensíveis e suaves do que eu estava acostumada.

Tirei os livros da caixa empoeirada na garagem, ainda da mudança de quatro anos atrás, e passei o domingo inteiro revisitando meus clássicos.

Para meu espanto, meus dedos sabiam achar seus lugares sozinhos em cada música, com quase nenhum esforço.

A forma da boca, que eu tanto penei para controlar na adolescência, com a combinação certa destes músculos contraídos e aqueles relaxados, e se ajustando para cima, para baixo e para a frente para atingir as notas mais agudas ou graves, vinha naturalmente. Sincronizar perfeitamente dedos e golpes de língua para o ataque das notas sair limpo? Sem problemas.

Resultado: eu nunca toquei flauta tão bem como depois de anos parada. Até meu filho saiu da toca para conferir.

O músico Gabriel Persico, do Conjunto de Música Antiga da USP, toca flauta clássica
O músico Gabriel Persico, do Conjunto de Música Antiga da USP, toca flauta clássica - Eduardo Knapp/Folhapress

Que diabos havia acontecido com meu cérebro em uma década sem prática, contra todos os preceitos da neurociência de que só se melhora com o uso?

Duas coisas. A primeira: foram tantos os anos de prática, modificando os circuitos dos núcleos da base que desafogam o córtex cerebral e tornam nossas ações automáticas, sem precisar de supervisão atenta, que mesmo após uma década sem uso, os circuitos e portanto os programas motores continuavam lá. Por isso não desaprendemos a andar de bicicleta, dirigir, assobiar, ou escrever à mão apesar do desuso.

E a segunda, não menos importante: passei os últimos três anos tendo aulas de violão clássico com um professor que me ensinou a importância de manter o toque leve, sincronizar perfeitamente as duas mãos, ajustar a posição dos dedos, acentuar a melodia, prestar atenção na pontuação, praticar os trechos difíceis em pedaços menores. Flauta certamente não é violão, mas os novos hábitos ao redor da música são generalizáveis. Toda forma de aprendizado se transfere e se aproveita.

Boa lição para tempos de quarentena...

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