Sylvia Colombo

Historiadora e jornalista especializada em América Latina, foi correspondente da Folha em Londres e em Buenos Aires, onde vive.

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Descrição de chapéu América Latina

Chile se divide entre cancelamento de Pablo Neruda e exaltação de Gabriela Mistral

Dois vencedores do Nobel de Literatura têm obras gigantes, mas seus símbolos são facilmente manipuláveis

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Um país que já ganhou dois prêmios Nobel de Literatura teria mais do que o suficiente para celebrar. Não é o caso do Chile, em que, hoje, dois bandos competem para determinar qual dos laureados deveria ser "cancelado" e qual de fato representa diferentes bandeiras ideológicas.

Pablo Neruda era membro do Partido Comunista e amigo de Salvador Allende, presidente morto no golpe de 1973, quando o Palácio de La Moneda foi alvo do bombardeio que terminou com a instalação de um regime militar comandado por Augusto Pinochet, em que mais de 3.000 pessoas seguem desaparecidas.

Imagem recortada do poeta chileno e prêmio Nobel Pablo Neruda em sua Casa-Museu em Santiago, no Chile
Imagem recortada do poeta chileno e prêmio Nobel Pablo Neruda em sua Casa-Museu em Santiago, no Chile - Ivan Alvarado - 6.abr.22/Reuters

Nos últimos dias, voltou a ganhar força a tese de que Neruda, dias após o golpe, foi assassinado enquanto tratava um câncer —estudos ainda não conclusivos sugerem que o poeta foi envenenado. A teoria se contrapõe à versão de que ele morreu devido à doença. Se for verdade, trata-se de mais uma morte terrível a ser incluída na lista de crueldades cometidas por Pinochet.

Mas voltemos ao processo de "cancelamento", que no caso de Neruda não é de hoje. Começou quando algumas mulheres passaram a considerar absurdo algo que ele deixou escrito em suas memórias, publicadas em 1974, descrevendo em detalhes de um estupro de uma camareira de um hotel no Sri Lanka, quando ele servia como diplomata ali.

Outra passagem deixou fãs e críticos transtornados. Neruda menosprezou Malva Marina, a filha que teve com a primeira mulher, Antonieta Hagenaar, e que nasceu com hidrocefalia. A menina morreu aos 8, e sua mãe acusou o pai de não dar nenhuma ajuda e, pior, de preferir gastar dinheiro com "bordéis e amantes".

O "cancelamento" do grande poeta chileno parece ter se materializado quando o projeto de trocar o nome do aeroporto de Santiago, de Arturo Merino Benítez para Pablo Neruda foi recebido com imenso protesto das feministas chilenas. Assim, os legisladores do país preferiram não avançar com a pauta.

Curiosamente, vem ganhando relevância, principalmente entre jovens, a figura de Gabriela Mistral, a primeira latino-americana a vencer o Nobel, em 1945. Mistral nunca defendeu claramente uma política de esquerda ou de direita, mas seus seguidores atuais preferem ver em seu perfil discreto, forte, que foi da infância humilde a se tornar professora nos EUA, um sinal de fortaleza feminina contra o patriarcado.

Com a convicção de que não deveria "sair do armário para guardar as aparências", Mistral, durante toda a vida teve uma parceira, Doris Dana, que passou a cuidar de sua obra quando ela morreu.

Ao contrário de Neruda, que rejeitou a filha, Mistral, que era católica, tratou sobrinhos e crianças das vizinhanças como filhos, o que vem levando à desconstrução da imagem sóbria e severa de suas imagens mais conhecidas, entre as quais a que estampa a cédula de 5.000 pesos chilenos.

Hoje, é diante do centro cultural Gabriela Mistral que se reúnem os jovens que se manifestam no centro da cidade, algo que se tornou comum desde 2019. Também é fácil encontrar nas esquinas do belo bairro de Lastarria, em Santiago, camisetas com a imagem da escritora carregando o lenço pró-aborto ou com frases usando o modelo inclusivo, que a poeta já utilizava em seu tempo.

Obra por obra, ambas são gigantes e deveriam ser recebidas como tal. Os símbolos, porém, são facilmente manipuláveis, permitindo essas esgrimas. O fato é que, se Neruda cometeu mesmo os crimes que descreve em seus escritos, algum tipo de reparação deveria ser feito.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior do texto afirmava incorretamente que Pablo Neruda servia como diplomata no Sri Lanka em 1974. Na verdade, este é o ano em que suas memórias foram publicadas, e o caso do estupro da camareira, detalhado. O poeta chileno morreu em 1973.

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