Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

A farsa do apartamento em Guarujá

Claro que foi errado, arquitetado, uma lorota das bravas. Se houve desvio, foi de caráter. Mas quem poderia julgar? Ficava na melhor praia de Guarujá, tinha vista pro mar e uns 300 metros quadrados, no ar-condicionado. Era o sonho de qualquer bravo brasileiro nascido na periferia.

A papelada era completamente ilícita e a utilização de um "laranja" foi totalmente necessária. Mandei o Celsinho, meu melhor amigo da época, entregar um bilhete escrito em caneta rosa perfumada: Amanda, quer ser minha amiga?

Amanda Bulhosa era a garota mais zoada da escola. Óculos pesados, pernas tortas e um freio que saía dos dentes (e encontrava um capacete de couro atrás das orelhas) não eram nem o começo da tragédia. Ela tinha também uma voz muito chata que, pra piorar, só ecoava despropósitos. Sua existência era escoltada, ininterruptamente, por um coro de insensíveis ávidos por gritar: "Dãããã". Na hora do recreio, enquanto a pobre comia, o grupinho mais popular da escola, também conhecido como "os lindos que adoram falar que já transam, mas duvido, porque eles só têm 12 anos" imitava o que seria o "som da digestão de um monstro". Ela estava sozinha no inferno.

Crédito: Danilo Verpa - 21.dez.2015/Folhapress Praia da Enseada, em Guarujá, em imagem de dezembro de 2015
Praia da Enseada, em Guarujá, em imagem de dezembro de 2015

Até que um dia, Amandinha chegou com uma novidade: um apartamento gigante em Guarujá. Ela trouxe fotos pra comprovar e, porque era realmente uma belíssima aquisição com piscina e o escambau, ninguém comentou sobre "como ela ficava estranha com aquele maiô". Seus pais estavam convidando dez amiguinhos para o feriado. Ela, que nunca teve acesso a nem sequer um "oi" da espécie humana, começou a receber sorrisos largos pelo corredor. O coro do "dããã" foi perdendo quórum à medida que a temperatura do final de ano foi esquentando.

Pra quem não lembra, ter um apartamento em Guarujá, no começo da década de 90, era o equivalente a ter, no começo dos anos 2000, um apartamento na Riviera de São Lourenço. Equivalente a, hoje em dia, não ter carro. Era chique, era cool, era uma coisa maravilhosa na vida da pessoa. Eu e mais uns 48 dissimulados começamos uma campanha ferrenha e extremamente ardilosa a nosso favor. Sim, os mistos-quentes usados como suborno envolviam dinheiro público. Éramos réus confessos da Operação Descida.

Aconteceu que, de a gente se forçar a gostar da Amanda, começamos a, de fato, sentir coisas boas por ela. E a Amanda, por sua vez (que tinha claramente como meta arrumar dez desgraçados pra chamar de amigos) se esforçou tão sobrenaturalmente a gostar da gente que acabou –a vida, vai ver, é bonita– sentindo algo bom por nós. Quando chegou o feriado, já tava todo mundo amigo de verdade. Não tenho provas, mas tenho convicção de que fomos muito felizes. Bons tempos em que a praia da Enseada funcionava melhor do que qualquer TED sobre os perigos do bullying.

Do alto daquela varanda incrível, com aquela vista maravilhosa, o poder (e um forte cheiro de peixe) me subiu à cabeça. Tentei por anos me manter (e a meus comparsas) mamando naquele cooler gigante cheio de refrigerantes (os Bulhosa já tinham varanda gourmet antes do termo ser inventado!). Mas Amanda se encheu da gente e foi andar com um povo mais descolado, que fazia "dããã" sempre que eu abria a boca.

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