Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Mulher fácil 

O verdadeiro presente que damos aos mais queridos é o que temos de mais ridículo: intimidade é isso 

Tudo o que eu mais queria era ser uma mulher fácil. Vejam o caso de Flávia, minha amiga desde o colégio. Do dia que decidiu (começar a tentar) engravidar ao dia que engravidou não passaram nem 12 horas. Vieram logo gêmeos, o que sempre achei uma loucura assustadora para a vida e a lombar de uma pessoa. Flávia não enjoou um minuto sequer. Não teve uma única dor muscular. Medo? Ela ria: de ser feliz em dobro? Transava com seu marido, até o final da gravidez, como se fosse uma jovem em ano sabático na Espanha, subia ladeiras com a destreza dos meninos desplugados de antigamente, comia toda a sorte de comidas apimentadas, chocolates maravilhosos, frituras do mal e não sofreu sequer um punzinho mais quente na madrugada. Fez uma trilha nível advanced plus três semanas antes de parir e abrilhantou todas as fotos como se tivesse acabado de sair de um salão de beleza.

A personal trainer Solange Frazão
A personal trainer Solange Frazão - Reprodução

Seus rechonchudos filhos nasceram de parto normal e ela, jurou aos amigos, sentiu somente uma coliquinha "muito de leve". Em uma semana retomou as aulas de funcional e sua bunda pós-parto ressurgiu ainda mais dura e jovial. Moleza pra ela só quando dizia: "Meditar pra mim é moleza!"

A desgraça hormonal nunca acometeu Flavinha. Pra menstruar ou pra parir. Pra amamentar ou pra existir. Ela não sabe o que é desejar furar os olhos de alguém cinco minutos depois de ter tido um ataque de risos, cinco minutos depois de ter decidido mudar completamente de vida, cinco minutos depois de ter combinado consigo mesma que estava tudo indo bem.

Visitei Flávia recentemente. Torci para que me narrasse uma noite terrivelmente mal dormida, uma explosão de fezes na parede do quarto, uma tarde em que o leite não deu conta de saciar os pequenos esfomeados. É preciso que os amigos sofram para que sigamos interessados em suas vidas. Flávia estava impecavelmente bela, tomando um demorado café da manhã. 

Narrei minha condição de mamilos esfolados por mamadas ansiosas e desgovernadas. Narrei as noites em que temo tropeçar com a bebê nos braços, tamanho cansaço. Narrei meu mais completo desinteresse por luxúrias corpóreas. Narrei o princípio de queloide de minha cesárea. Narrei minhas inglórias 36 horas em trabalho de parto. Narrei minha vexatória saudade de me dedicar apenas para mim. Vamos lá, Flávia, a amizade é isso, eu digo que na lama e você me conta alguma desgraça da sua rotina para que eu fique mais animadinha. O verdadeiro presente que damos aos mais queridos é o que temos de mais ridículo. Intimidade é isso. Amor é isso. Vamos lá, um furúnculo que seja! Flávia ouviu um choro e nem se mexeu da cadeira: é o bebê do vizinho, os meus não choram!

Certa feita espalharam um boato de que o marido de Flávia pulava a cerca. As amigas se reuniram pra decidir se contavam ou não. Nossa alegria era contagiante. Por fim, veríamos nossa amada "irmã" tendo que lidar com o que todas nós enfrentávamos desde a mais tenra infância: ininterrupta frustração. Mas a amante era a própria Flávia, que tinha clareado o cabelo. 

Antes de ir embora, enchi o peito. Foram anos aturando sua mala pequena e, ainda assim, sempre contendo tudo que precisava. Sua mais completa falta de angústia e, ainda assim, como era ótima pra indicar livros e colecionar arte. Chega! Me conte algo ruim, por favor! Me diga que precisa pensar no seu cunhado pra se excitar e que chora tanto no banho que fica surda depois. Me mostre os remédios escondidos na gaveta de meias. Não tive coragem de dizer nada disso, acho que eu não suportaria saber.

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