Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Uma daquelas pessoas

Meu tesão está todo voltado para as novidades em relaxantes musculares e sabonetes dermatológicos

Percebi que eu estava prestes a virar uma daquelas pessoas quando entrei de sócia em um clube. Mentira, foi quando fiquei feliz que abriria um bom hospital na avenida Sumaré. Mentira, foi quando contratei uma babá, a levei ao clube comigo e fiquei tentando, enquanto ela vigiava minha filha, pegar os resultados dos exames de sangue (apenas "rotina") pelo aplicativo do hospital que abriu na Sumaré.


Percebi que havia virado uma daquelas pessoas quando o taxista desviou de um buraco e falei "ê, São Paulo!". Frase que poderia ter sido claramente dita pela tia Cidinha. No mesmo dia, ao mesmo taxista, também proferi algo como "ah, mas quando tá abafado assim é chuva na certa". Analise comigo a quantidade gritante de palavras combinadas nessa frase que poderiam ter sido ditas por uma daquelas pessoas: "ah, mas" "quando tá", "abafado assim", "é chuva" e, a mais terrível de todas: "na certa". Só aquele tipo de pessoa (que temos pavor de virar) gosta de achar que tem certeza de algo a ponto de dizer "na certa".

Sei que virei uma daquelas pessoas porque "poder me demorar na farmácia" é a minha balada preferida. Quando a mocinha da farmácia encontra o antiácido digo "nossa, que ótimo" e sinto um deleite genuíno. A fila da farmácia é a nova fila para pagar a comanda da balada. Você louco para ir embora porque já gastou todo o seu tesão no lugar e a fila não anda. No meu caso, agora que virei uma daquelas pessoas, meu tesão está todo voltado para as novidades em relaxantes musculares e sabonetes dermatológicos.
Sou uma daquelas pessoas porque estou há dias planejando dar fim ao meu marido e seu mais recente tique (certamente nervoso, pois ele está virando uma daquelas pessoas e certamente está apavorado com a transformação, ou melhor: está apavorado NA CERTA). O tique consiste em um híbrido de grande soluço com miniarroto, e ele comete esse som sempre que eu lhe peço alguma coisa logo depois de já ter lhe pedido umas dez coisas. Ele gostaria de me mandar dar uma pequena falecida (pois sou uma daquelas pessoas que acabam casando e acabam colocando toda a libido em proclamar mil ordens desnecessárias para um cônjuge que gostaria de sumir mas, porque virou uma daquelas pessoas, apenas atura tudo com esse pequeno grito de liberdade em forma de grande soluço com miniarroto). E eu odeio esse som com todas as minhas forças. E ele sabe e, não podendo me matar (tampouco contê-lo), me esquarteja espiritualmente centenas de microvezes diárias, emanando o som macabro de seu retorno do recalcado esofágico. O refluxo é nossa única verdade.


Posso dar aula de como ser uma daquelas pessoas porque comprei, sem me dar conta que era esse o crachá definitivo do "sou pra cacete uma daqueles pessoas" um daqueles colares gigantes e coloridos estilo "psicóloga velha modernete". E quase ornei a desgraça com sapatilha bege. Nossa, que ótimo! Melhor que antiácido.

Quando comprei uma cristaleira e descobri que poderia ser legal (mais legal que sexo, por exemplo) expor as louças japonesas de vovó, assinei com meu sangue a certidão definitiva na qual diz "fulana virou uma daquelas pessoas". Comecei a suar geladinho tipo aquelas mulheres com braços gordos que fazem tortas cheias de palmitos e milhos e azeitonas. Comecei a gostar de aliche e a falar "ai, pai do céu" quando bocejo. Não tem mais volta.

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