Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Duas vezes

Os áudios acelerados no WhatsApp foram a terceira melhor invenção do século

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Desde que o WhatsApp nos presenteou com a opção de acelerar os áudios, passei a achar que todo o resto da humanidade anda lento demais.

Antes, quando um amigo levava um pé na bunda, a gente ia até a casa dele, ouvia por sete horas a mesma ladainha e, no dia seguinte (e talvez por alguns meses), o enamorado em chamas ainda telefonava pra você e derramava mais repetições ad nauseam na sua orelha. Agora, com o advento do áudio, basta que o sofredor obsessivo grave o mesmo roteiro 78 vezes —e aí você faz que escuta todos, mas ouve um só—, com a possibilidade de ser reproduzido na velocidade da sua paciência (ou da sua agenda).

É tão viciante acelerar alguns convívios que comecei a achar que, por pura sacanagem, as pessoas estão falando em slow motion nas reuniões, nas salas de espera, nas lojas etc.

Phantip adobe stock

Já faz um semestre que uma conhecida chatérrima, do tipo que não consegue resolver uma única coisa no dia e tem fala arrastada, se tornou uma pessoa agilizada e bem-disposta. É exatamente o mesmo áudio triste e reclamão, mas, como é enunciado com urgência e ênfase, fica a impressão de que ela vai conquistar o mundo hoje mesmo.

Confesso que, das doze pessoas que suporto no mundo, apenas três merecem o meu “1,5x”. A grande maioria me desperta a vontade de apertar o “2x” ao lado de suas fotinhos (ou de suas bocas, quando as vejo pessoalmente). Sou uma escrota? Também, mas, mais do que isso, sou uma mulher do meu tempo (e sem tempo).

Alguns familiares bem próximos, por exemplo, que andavam fazendo de suas reclamações a meu respeito capítulos épicos de audiobooks, agora estão disponibilizados em livro de bolso e resumo pra vestibular. Fora que é tão divertido ser ofendida de maneira acelerada! Eu nunca sei se vão me chamar de vaca ou dizer “em caso de suspeita de dengue...”. Os áudios que me insultam agora trazem toda uma leveza pra minha incapacidade de amar.

Facilitou também a vida de quem ainda pega uns freelas de publicidade. O famigerado briefing do cliente —também conhecido como uma mesma frase ruim dita de 67 maneiras insuportáveis e confusas— ganhou finalmente o tamanho ínfimo que merecia. Agora o que você já não entendia (nem a coitada do atendimento que está gravando o áudio) continua incompreensível, porém o infortúnio tira apenas alguns segundos da sua vontade de viver, e não mais infinitos minutos.

O tempo que duravam meus áudios chorosos para o meu marido carregava toda uma seriedade e uma dor típicas do fim de um relacionamento. Agora, meu jorro inconformista, minhas súplicas desgastadas e meu cinismo romanceado ganharam ares de esquete. Eu consigo ouvir o exato momento da “punch line” (quando digo “cheeeggaaahhh” pela centésima vez e sigo sem sair do mesmo lugar) e acho que meu casamento merecia ser aplaudido por uma plateia de quarentonas desesperadas e fãs de “A Bela da Tarde”.

Ah, mas e o capitalismo? E o neoliberalismo? E os remédios que melhoram nossa performance e vamos cada vez mais nos tornando máquinas funcionais deprimidas a favor do capitalismo e do neoliberalismo? Sim, tem toda essa discussão. Só que, na prática, porque vivo no capitalismo e no neoliberalismo (e de fato se eu não funcionar não consigo pagar as prestações da casa e eu adoro funcionar e adoro minha casa e curto um remedinho), podemos dizer que os áudios acelerados no WhatsApp foram a terceira melhor invenção do século: vacinas e sugadores clitorianos sempre estarão na frente (aliás, com este último é bem mais rápido também).

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