Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Não é tudo isso

Desculpa lembrá-los, mas a gente nunca foi exatamente feliz

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Como pessoa ansiosa e pessimista que sou, venho do futuro pra te preparar: quando acabar a pandemia e você voltar a dar festas e a encontrar a parentada no Natal, uma onda de desgosto vai tomar todo o seu corpo.

Nesses quase dois anos, idealizamos nosso passado. Como diria Neymar, uma saudade do que a gente não viveu. Nos apaixonamos por pessoas que nem conseguimos conhecer direito; mandamos uma quantidade exagerada de corações pulsantes pra vários amigos dos quais já nem gostávamos mais e imploramos pela volta dos colinhos dos nossos pais, esquecendo por completo que eles nunca foram muito disso –e ainda correríamos o risco de ouvir coisas como “precisa cortar esse cabelo”, “seu couro cabeludo está descascando” e “quando for doar essa mesinha de centro eu quero”.

Que saudade do restaurante da modinha lotado! Você feito uma trouxa em pé, na porta, implorando por um suco de melancia pra não morrer de hipoglicemia. Duas horas depois, te colocam em frente a um banheiro, ao lado da mesa com garotas insuportavelmente nasaladas falando muito alto sobre algo absolutamente desinteressante.

Eu quero viajar!!! Quer nada. Se meter 12 horas na econômica de um avião é pior do que pegar dengue e precisar fazer hora extra no trabalho. Dormir numa fronha em que 376 desconhecidos já babaram. Quem você quer enganar fingindo que não tem aflição de hotel? Aquele controle remoto com restos de sêmen das pousadas românticas. Você na praia no Ano-Novo fingindo que está feliz porque todos estão fingindo e é preciso se agarrar a alguma coisa, algum pertencimento, quando um ciclo se encerra e lembramos que vamos todos morrer.

Mulher grávida - Enrique Castro-Mendivil - 21.mai.2010/Reuters

Desculpa lembrá-los, mas a gente nunca foi exatamente feliz. Os chás de bebê e as barrigas imensas com sorrisos pintados de guache vão voltar; as festas infantis com temática de princesa vão voltar; sua tia Carminha que sempre te acha gorda e depois chora porque “você não a olha como se a amasse de verdade” vai voltar; os vizinhos que curtem pequenos convescotes regados a pagode vão voltar, e seu gastro vai voltar a insistir que você já está na idade da colonoscopia. É melhor do que viver uma pandemia? Certamente. Mas ainda melhor, pra que a queda não seja tão grande, é já começarmos a recordar o quanto tudo pode ser insuportável, enfadonho e desesperador.

Queria dar uma festa! Queria mesmo? Será que tô com essa saudade toda de ver meu lavabo com marcas de urina e sola de sapato? Taças quebradas no chão da cozinha. A namorada da semana de um meio amigo que fica drogada e prolixa e não vai embora jamais e repete a mesma história insuportável mil vezes e diz coisas como “isso não tem a ver com a pessoa que eu sou, porque a pessoa que eu sou...”. Um ex que eu chamo pra ver tudo o que ele perdeu, mas o desgraçado chega com a rainha do colágeno, e ela ainda risca meu piso dançando de salto alto. Querer assassinar meu cônjuge porque ele não sabe beber e lambe carecas e fica chatão e no dia seguinte anda atrás de mim feito o Sloth me pedindo remédios pra enxaqueca. Lembrar que desde que fiz 40 anos não posso mais ir dormir depois da meia-noite porque no dia seguinte parece que fui abduzida por ETs que trocaram minha carcaça por uma de 98 anos. Será que a vida era tão legal assim?

Eu sei que 40% do país já decretou o fim da pandemia, mas, como pessoa ansiosa e pessimista que sou, venho do futuro pra contar que eles vão se arrepender muito em breve. Isso tudo é terrível e infernal e triste e quero minha vida de volta. Quero toda a chatice de volta. Periga eu abrir um espacate de alegria em uma cerimônia longa de casamento. Mas é sempre importante lembrar que lá no fundo estarei deprimida e doida pra voltar pra minha cama. Nota mental pra mim e pra você: não é porque parou de ser horrível que vai ser maravilhoso.

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