Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Tati Bernardi
Descrição de chapéu É Coisa Fina

Uma carne infinita é a visão dos loucos

Aqui vai um conselho dessa colunista: volte sempre para Clarice Lispector

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Já na página inicial do meu exemplar de "A Paixão Segundo GH", de Clarice Lispector (1920-1977), tem um círculo bem grosso que fiz a lápis quando li a obra pela primeira vez, em 2002: "uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar, mas que fazia de mim um tripé estável". Na época, lembro bem, o trecho fazia muito sentido, porque eu sabia que precisava enfrentar meus medos, apesar do maior deles: ficar maluca.

Agora, exatos 20 anos depois, meu impulso foi o mesmíssimo, circular a frase até quase fazer um buraco na página. E pelos mesmos motivos.

Aqui vai um conselho dessa colunista: volte sempre para Clarice Lispector. Não porque ali haja respostas. Mas porque ali há, na versão da maior escritora deste país, talvez do mundo, um relato corajoso e divino sobre a incapacidade de formular sequer uma pergunta possível.

GH, mulher de boas condições financeiras, mora em uma cobertura e tem muito prazer, protegida e medrosa que é, em organizar objetos e pensamentos. Gosta de pensar também que o quartinho recém-desocupado pela empregada, mulher que a personagem julga inferior, deve estar sujo e bagunçado. Toma um susto quando percebe que não controla sua casa (como diria Freud sobre todos nós, no quesito inconsciente) e que o quartinho está impecavelmente claro, arrumado e, ainda mais inesperadamente: a ex-funcionária era uma espécie de artista rupestre!

Mas é ao se deparar com uma barata dentro do armário que GH pode se entregar ao descontrole, à desorientação, à desumanização, à perda da civilização, da esperança (para, ao final, poder ganhar confiança) e do "medo do feio".

Sempre que leio esse livro é como se mudasse de país. Talvez de planeta. Ao mesmo tempo, dá a sensação de voltar para casa e, finalmente, poder aguentar todos os infinitos questionamentos que pesam dentro de mim e dos quais minha linguagem nunca deu conta. Minhas palavras —e tudo em mim que é estruturado— nunca conseguiram expressar exatamente o que me angustia tanto (na vida, de modo geral, e durante a leitura dessa obra: aliás, não seria a mesma coisa?). E, até nesses momentos, Clarice nos pega pela mão: "como eu poderia dizer sem que a palavra mentisse por mim?"; "o indizível só me poderá ser dado através do fracasso da linguagem"; "a hora da morte não seria traduzida por palavras"; e, ainda, "a linguagem é tudo que eu tenho, mas como tenho muito mais à medida que não consigo usá-la".

Com tantas divagações que poderiam conversar com Lacan, o psicanalista que acreditava que nosso inconsciente está estruturado como linguagem, é interessante —e bastante compreensível— pensar que Clarice, a escritora do inumano e da despersonalização, abandonava sessões de análise e reuniões acadêmicas que tentassem interpretar sua obra. O que GH buscava, a partir do momento em que encarou a barata e "parou de viver para começar a viver", era o núcleo das coisas, o ato ínfimo, o hoje sem enfeites, ficar dentro "do que se é", e para isso estava disposta a "abrir mão do jogo da beleza".

Cada parágrafo desse livro leva nosso corpo para um passeio sem bordas por sensações que recalcamos para seguir com os dias. Nunca esqueci a frase "uma carne infinita é a visão dos loucos". Mas Clarice morde e assopra, por isso encerra essa obra espetacular com este dizer eterno: "eu não entendo o que digo. E então adoro".

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.