Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

'É alucinógeno, Tati'; falam como se falassem: 'Vai por Jundiaí, Tati'

Eu, que nunca bebi cerveja, chapada durante seis horas?

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Meu reumatologista, que já cansou dos meus áudios diários e das nossas tentativas de tratamento, me conta de um sítio, pertinho de São Paulo, no qual um casal, ela neurologista e ele biólogo, está fazendo estudos incríveis com cogumelos. Ele acha que pode ser interessante para o alívio da minha dor crônica. Penso que talvez me ajude com as crises de ansiedade. Concluímos que o tratamento quem sabe melhore minhas enxaquecas. Fico animada.

Possivelmente eu só queira um motivo para escrever um texto sobre ficar chapada num sítio de mãos dadas com médicos? Sim. Sou tão hipocondríaca quanto desesperada por inspiração literária. Porém escrever ou tentar me salvar de qualquer infortúnio mental são a mesma coisa. Proponho uma matéria grande, para uma revista cabeçuda, sobre minha experiência guiada por doutores com o chazinho fúngico. A publicação se anima.

Estou com medo, mas tenho amigos que tomam psilocibina para ir à padaria ou trocar fralda de filho. É só um dia normal e vai dar tudo certo. Marco data e horário. Encontro o casal antes, em um café perto de casa, para entender como funciona. Você leva uma mochilinha, leva toalha, leva chinelos. Daí vêm a informação-bomba: não são microdoses. São cogumelos mesmo. INTEIROS. É mais forte que ayahuasca? Eu tenho pavor de ayahuasca. É bem diferente, mas é praticamente a mesma coisa.

Eles me explicam que vou ficar chapada por seis horas. SEIS HORAS DOIDA. Fora da casinha. Eu que nunca cheirei lança porque, francamente, pra que eu vou ficar dois segundos estranha e ouvir um apito? Eu que temo lavar a cabeça depois da meia-noite e que durmo agarrada com Vonau sempre que como pastel. Eu que tenho MEDO de pastel porque acho que vou acordar numa poça de bile e lágrimas.

Grande quantidade de cogumelos multicoloridos
Ilustração de cogumelos psicodélicos de Raphael Egel - Arquivo Pessoal

"É alucinógeno, Tati." Falam como se falassem: "Vai por Jundiaí, Tati". Veja bem: eu não gosto nem de passar de 100 quilômetros por hora em estrada porque me dá emoção. E emoção me dá um gostosinho que me dá receio de querer acelerar mais e mais até acelerar para Deus.

Explico que nunca bebi nem cerveja, nunca fumei nem cigarro e na minha única tentativa de sexo a três fiquei vasovagal e chamei um Uber.

Me garantem que vai valer a pena. Afirmam que vou vasculhar tanto o meu inconsciente que vai ser como se eu fizesse, numa tarde, 20 anos de análise. Penso na economia que seria. Riem e me contam que sairei da minha vivência provavelmente melhor das dores. Sem minhas dores, onde vai doer? Talvez não doa nada. Imagina isso? Nem sei como um corpo desse ficaria de pé. Um corpo de bicho que não sente dor pra fazer de conta que é ser humaninho social.

Decido que vou fazer. Vou tomar. Meu namorado vai comigo. Se eu vomitar ou se eu pirar ou se eu me rasgar inteira ou se eu cagar a casa toda e sair carimbando uma mão de merda nas paredes ou se eu chorar a ponto de engasgar e provocar uma embolia ou se eu sentir um amor tão intenso e profundo pela minha filha a ponto de querer quebrar os ossos que limitam minha pose para educá-la como se ela não fosse a rainha absoluta da minha vida, se eu lembrar de algum abuso (já lembrei de uns sete só agora), se eu chorar por 100 anos porque tenho saudade da minha mãe.

A minha mãe. Alguém sabe dela? Não a vejo há pelo menos 15 anos. Uma senhora desconhecida tomou o corpo de uma mãe que me amava e de quem era delicioso ficar perto. Eu tenho tanta saudade da minha mãe que às vezes tomo banho socando o peito. Você me ajuda? Meu namorado disse que sim. O biólogo e a neurologista disseram que sim. Meu reumato disse que sim. Vai, Tati. Não fui.

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