Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
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Escrever sobre um personagem misógino não significa defendê-lo

Isso não deveria ser óbvio para profissionais de cinema e televisão? Não são

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Em menos de uma semana assisti a todos os episódios de "Bebê Rena" e "Ripley", séries excelentes, viciantes e muito bem ranqueadas na Netflix. Alerta: tem spoiler chegando pesado nos próximos parágrafos.

Tratado como "o hit do momento", "Bebê Rena" narra a história de um artista frustrado que conclui se odiar profundamente por permitir, com certo gozo, abusos morais, sexuais e psicológicos. A série é sombria, aflitiva e muito corajosa ao expor as mazelas psíquicas de um homem mais atormentado pela própria mente do que pela perseguição doentia e criminosa da sua stalker.

Cena da série 'Bebê Rena', da Netflix
Cena da série 'Bebê Rena', da Netflix - Divulgação

E fica ainda mais instigante quando descobrimos que tudo isso aconteceu de verdade com Richard Gadd, seu criador e protagonista.

Já a nova versão do romance de Patricia Highsmith, sobre um sociopata que aspira a uma vida burguesa, traz o brilhante ator Andrew Scott interpretando um Tom Ripley infinitamente mais macabro, violento e charmoso (e mais parecido com o original) do que o papel que deram para Matt Damon no final dos anos 90.

Em paralelo, aqui no Brasil, nós, roteiristas, seguimos aturando o mesmo enfadonho e desestimulante papo de que precisamos criar séries "feel good", de preferência com personagens leves e histórias de amor sem grandes complexidades e maldades.

Daí você pensa na premiadíssima "Fleabag", de Phoebe Waller-Bridge... bem, ela é compulsiva sexual, feminista de merda, transa padre e ainda se sente responsável pela morte da melhor amiga. Se novela das seis ainda pagasse as contas, a Globo não precisaria expor jovens a tanta insanidade e álcool naquela desgraça de Big Brother Brasil.

Na adaptação mais recente de "Cenas de um Casamento", dirigida pelo incrível Hagai Levi e baseada na obra do não menos admirável Ingmar Bergman, Oscar Isaac coloca a Jessica Chastain de quatro no sofazinho e depois implora para que ela assine o divórcio. "SIGN!!!" Ela o enrola, e insiste: "Eu só quero um bife, me leve para comer uma carne".

Você sofre porque já esteve no lugar dela e já esteve no lugar dele. Você lembra da devastação desse homem asmático quando ela o larga, diz que sente nojo e ainda esfrega em sua cara um novo relacionamento. Então ele a empurra... e você não pensa: "Nossa, que violento, vamos cortar a cena porque as redes sociais vão enlouquecer". Você somente conclui: "Isso é arte".

Mas, aqui no Brasil, a turma que aprova nossos roteiros insiste em aplicar a militância nos personagens: "O namorado da protagonista é machista, não pode!". Ou: "Uma mulher inteligente não perderia tempo em um relacionamento tóxico!". Oi?! Minha vida inteira foi perdida em relações tóxicas e, em contrapartida, nunca ignorei minha potencial toxidade.

Em que mundo essas executivas de 29 anos que leram dois livros feministas e foram duas vezes ao SXSW vivem?

Escrever sobre um personagem misógino não significa que você o defenda ou seja igual a ele. Significa, justamente, escancarar, criminalizar e ridicularizar. Ou ser livre para criar (e espelhar a vida real). Você não acha que tais argumentos deveriam ser óbvios para profissionais de cinema e televisão? Não são.

A graça de séries geniais como "Succession" e "The White Lotus" é que ninguém presta. NINGUÉM. E isso não é apenas ousado, isso é a vida como ela é. Aliás, essa frase me lembra aquela saudosa minissérie da Globo, baseada na obra de Nelson Rodrigues. Quem duvida que seria reprovada pelo crivo esterilizado dos streamings de hoje?

Eu, que nem aturo gente "feel good", vou passar agora meses da minha vida criando personagens superficiais e desinteressantes? Jamais.

Parem de falir e nos falir! Pessoas do dinheiro (sempre que um canal não aprova uma boa série, culpa a tal "pessoa do dinheiro"), acreditem na maldade! Até porque, se vocês não acreditassem, não seriam as pessoas do dinheiro.

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