Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu Todas

A fraqueza que não temos

Esperei o suco de laranja imenso chegar para me esconder atrás dele

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Nunca fui muito fã de dirigir sozinha em estradas. Depois que minha filha nasceu, o medo triplicou. Nas últimas viagens que fizemos, somente eu e ela, cheguei a pagar um taxista conhecido para nos levar e depois buscar. De onde veio essa ideia? Tudo isso por medo das minhas mãos no volante não serem firmes o suficiente? Ou da minha silhueta feminina dentro de um carro ser um chamariz para as violências do mundo?

Logo que me separei, um novo pavor surgiu na minha fábrica de pensamentos intrusivos: e se eu, único adulto da casa, tiver um AVC e minha filha me chamar? E se eu escorregar no banheiro e bater a cabeça e ela me encontrar meio desfalecida e ficar traumatizada para o resto da vida? Fiz ressonância da cabeça e levei a um neurologista. Ele me disse que estava tudo bem, mas sugeriu que eu aumentasse as sessões de terapia.

Cheguei a pedir para o pai dormir com o celular ligado embaixo do travesseiro. Se durante a madrugada eu tivesse uma crise vasovagal e sentisse que o desmaio estava perto, eu apenas mandaria a mensagem "vem agora". Tudo isso por medo da minha filha me chamar e meu corpo não ir. E por que meu corpo fracassaria? E por que uma mãe não iria?

Nos primeiros meses da minha gravidez, quando eu não conseguia beber nem um copo d’água sem vomitar e fiquei muito anêmica, eu tive medo de não ser digna da maternidade. Rezei por 90 dias, ininterruptamente, para que minha filha sugasse tudo de mim e nascesse perfeita. Depois, se fosse isso mesmo, se eu fosse quebrada demais para dar conta de um bebê, eu teria a decência de deixá-la com o pai e desapareceria.

A ilustração de Líbero mostra uma barriga de mulher grávida com ambas as mãos na base, como se estivesse segurando
Líbero/Folhapress

Na décima terceira semana prenha, quando acordei com fome e sem vontade de dormir por 67 anos, eu instantaneamente retomei meu tamanho, minha matéria, minha consciência e meu desejo de ser mãe. Mas por que eu ignorei a ciência dizendo que a produção de beta-HCG dá um enjoo da porra e acreditei ser todinha o meu mal-estar? Por que pensei que era fraqueza e desqualificação o que era tão e somente progesterona? Por que é tão fácil para mim, mesmo sabendo que sou uma senhora bem legalzinha e cheia de realizações, de repente me ver como um trapo inútil e infantilizado?

Tenho 45 anos, faço terapia há pelo menos duas décadas e já li uma quantidade razoável de livros feministas. Nunca fiz a fada sonsa —"não se pode dizer tudo, menina"— com medo de não ter parceiros. Sempre banquei uma certa agressividade, que inclui escrever sobre tudo o que me der na telha, cobrar muito bem pelo meu trabalho e dar em cima de todos os rapazes que me interessarem (nunca me serviu o papel da donzela que espera ser cortejada).

Mas semana passada fui novamente abduzida pelo conservadorismo e pelo patriarcado e me peguei chorando no Ráscal. Ah, meu deus, que fracasso! Estou só, rodeada por famílias!

Pais levantando seus rebentos no colo. Os barbudos sempre me emocionam mais. Fantasio com as estantes apinhadas de livros; as conversas profundas antes de dormir; o tesão infinito; o companheiro dizendo "dorme, amor, eu vou de novo", ao som de uma criança berrando na madrugada; as mãos dadas em qualquer perrengue e a parceria inabalável até o fim! Sim! Como são felizes! (RISOS). E esperei o suco de laranja imenso da minha filha chegar para me esconder atrás dele e deixar as lágrimas gordas rolarem pesadas.

Onde eu errei, Deus? Ah se eu tivesse reclamado e pedido menos! Ah se eu fosse mais doce e feminina! Ah se eu pudesse renunciar à minha capacidade de ver com tanta agudez e detalhamento! Ah se eu não tivesse, infinitas vezes, ambicionado exatamente esta vida de agora, livre e vertiginosa, ao lado da minha garotinha esperta. Ah se eu fosse mais... fraca? Mas a gente não é fraca.

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