Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Thiago Amparo

Chile nos ensina sobre civilidade

Protestos demandam espaços onde possamos discordar

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3.162 pessoas detidas pela polícia. Caso de um jovem gay abusado sexualmente em uma delegacia. Cerca de mil pessoas hospitalizadas, sendo metade por disparos de armas de fogo e 125 feridas no globo ocular. Três homens e um adolescente de 14 anos crucificados em uma antena de delegacia. Ao menos 18 pessoas mortas.

Este é o saldo das repressões aos protestos no Chile nos últimos dias, segundo dados do Instituto Nacional de Direitos Humanos do país andino.

Vemos milhões de pessoas ocupando ruas, metrôs, prédios públicos. A beleza ímpar da foto da bandeira do povo indígena Mapuche no topo da montanha de manifestantes na praça central em Santiago evidencia inclusive o protagonismo de povos tradicionais ali e no Equador.

Manifestantes com bandeira mapuche durante protesto em Santiago, no Chile
Manifestantes com bandeira mapuche durante protesto em Santiago, no Chile - Henry Romero - 26.out.19/Reuters

Parte das críticas simplistas aqui no Brasil aos protestos na América Latina enfatizam em especial os atos de desobediência civil, como pular catracas do metrô ou ocupar ruas sem aviso prévio, como formas de deslegitimar tais protestos (não falo aqui de violência contra pessoas, essa injustificável).

Afinal, o que é civilidade? Em recente livro intitulado "Mere Civility", a professora de Oxford Teresa M. Bejan defende que civilidade não significa ficar quieto diante de questões polêmicas (típica tática em jantares familiares pós-eleição de 2018); tampouco significaria tratar a todos como irmãos. 

Por meio de uma análise rigorosa dos debates no século 17 sobre intolerância religiosa, Bejan defende que a civilidade mora entre estes extremos: é falar sobre nossas divergências na cara daqueles com quem discordamos profundamente, não nas suas costas.

"É a virtude que governa nossas relações com maus vizinhos ou membros do partido político ou crença opositores", escreve. Uma mínima (ou mera) civilidade, portanto. Civilidade que pressupõe espaços onde nossas divergências possam ser confrontadas.

Não é a polarização em si que nos levará a insurgências como no Chile. Será a incapacidade estrutural dos círculos de poder político e econômico de lidar com as frustações em sociedades profundamente desiguais. 

É nossa falta de civilidade entendida como a virtude de discordar abertamente e a partir daí avançar. Consenso na elite chilena sobre políticas econômicas evidencia mais um problema democrático do que sua solução.

Não basta jogar dos céus brioches pra quem demanda justiça social. Desde a publicação do primoroso livro de Doug McAdam em 1982 sobre os movimentos negros por direitos civis nos EUA, sabemos que insurgências sociais não ocorrem somente pela soma de demandas individuais.

McAdam já reconhecera que estruturas de solidariedade e comunicação "“hoje potencializadas por mídias sociais"“ juntamente com a falta de responsividade das elites, e maior consciência sobre injustiças, constituem os fios desencampados sobre os quais escreveu Oscar Vilhena nesta Folha, capazes de dar ignição a insurgências. 

Lá em 1964, Nina Simone cantava em "Mississippi Goddam": "você não precisa morar do meu lado, basta dar a minha igualdade". Separados somos por um abismo de desigualdade, mesmo na mais avançada economia latino-americana. "O crescimento econômico não se entende como tal se não chegar a todos os membros da sociedade", diz carta assinada por economistas chilenos à luz dos protestos. 

Sem incorporar esses excluídos nos espaços de poder econômico e político que os afetam, outros Chiles se repetirão aqui e lá. E é essa exclusão, e não os protestos, uma falta de civilidade.

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