Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Thiago Amparo

Do que é feita a esperança na pandemia

Redes de solidariedade tecem futuro pós-coronavírus

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Do que é feita a esperança senão de suor? Esperança nasce das ruas. Não é uma ideia, é uma ação. Ou, melhor, é uma ideia-ação. É uma ideia que renasce no exato momento da ação de solidariedade.

Brasil afora, renasce toda vez em que as Andrezas Delgados, os Rauls Santiagos, os Renes Silvas, as Anielles Francos, as Carmens Silvas Ferreiras, as Alessandras Mundurukus se recusam a sucumbir ao desespero. Praticam o futuro, como quem ensaia uma peça de teatro com o material que o presente nos dá.

Em tempos de pandemia, construir futuros é um ato político solidário. É dar nome e sobrenome às vítimas da pandemia, como faz o projeto Inumeráveis. Memoriais erguidos sob nossa dor compartilhada.

Tecnologias de solidariedade sempre existiram nas nossas Wakandas, imaginárias ou reais. Enquanto movimento artístico e político, afrofuturismo nos faz imaginar o futuro das redes de solidariedade que sempre ocuparam a centralidade da nossa existência. O que são quilombos senão as veias abertas de um futuro solidário, livre? Aquilombem-se, escrevera Abdias Nascimento.

O que é o #MapaCoronaNasPeriferias, do Favela em Pauta e Instituto Marielle Franco, senão a cartografia dos nossos quilombos reais de solidariedade? Sonhar é um ato territorial. Viva a luta dos povos quilombolas e dos povos indígenas. Suas tecnologias de proteção há séculos desenham futuros possíveis.

Futuro, para nós, é matéria real, não sonho. No livro “The Underground Railroad”, Colson Whitehead imagina caminhos de liberdade da escravidão materializados em ferrovias submersas que apontam para o futuro. Futuro impresso em 3D em forma de máscaras pelo engenheiro Lucas Lima no Complexo do Alemão. Futuro em forma de marmitas árabes entregues pelo casal de refugiados sírios Talal Al-Tinawi e Ghazal, a idosos em São Paulo.

Em nossos futuros, evangelhos —de qualquer matriz existem na solidariedade, ou não existem. “Levem os fardos pesados uns dos outros e, assim, cumpram a lei de Cristo”, já fora escrito em Gálatas 6:2.

O que é o evangelho senão Padre Júlio Lancelotti, de máscara, nos abençoando mesmo na pandemia? O que é o evangelho senão evangélicos da Comunidade da Graça distribuindo café da manhã e almoço para usuários de drogas na região central em SP? Fé num futuro possível se materializa na solidariedade, nos nossos terreiros, centros, igrejas, sinagogas, mesquitas abertas. Abertas para o futuro, hoje.

Em nossa Wakanda possível, mulheres —todas elas— falarão elas por elas. Viva Odara na Bahia, viva Associação de Mulheres de Paraisópolis, viva a Escola Feminista Abya Yala em SP, viva a Rede de Solidariedade de Mulheres de Manaus, viva as Mães da Favela da Central Única das Favelas, viva a Rede Feminista de Juristas. Viva todas as frentes de apoio às mulheres em situação de violência Brasil afora.

Viva todas as iniciativas, como a da ONG Criola, para trabalhadoras domésticas e autônomas, em sua maioria negras. Viva ONGs #VoteLGBT, ABGLT, Antra Brasil e tantas outras que mapeiam impacto e desenham apoios a LGBTs, em especial mulheres transexuais, travestis e homens trans em situação de rua, e jovens LGBTs em isolamento hostil.

Precisamos descolonizar solidariedade. Não está na instrumentalização da caridade como expiação da culpa privilegiada. Está em utilizar privilégio, e subvertê-lo em solidariedade. Está na fila de artistas utilizando suas plataformas para levantar fundos a quem precisa. Solidariedade está em reconhecer que se o vírus não nos mudará por completo —ao contrário, provavelmente nos fará mais desiguais—, ao menos exporá as entranhas da solidariedade que nos fazem humanos, e que sempre existiram em nossos quilombos.

Todas as revoluções começaram com uma esperança fora de lugar. Aqui volto a Colson Whitehead e sua história da esperança dos escravizados. “Cora não sabia o que otimista significava. Ela perguntou às outras garotas naquela noite se elas estavam familiarizadas com a palavra. Nenhuma delas tinha ouvido isso antes. Ela decidiu que significava tentar.” Nossas dores sempre foram sobre tentar construir futuros, hoje.

Solidariedade é verbo que só se conjuga no plural.

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