Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Descrição de chapéu Coronavírus

Autoritarismo quer esmagar nosso luto

Cem mil mortes nos impõem trauma coletivo que a democracia requer que processemos

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Este texto começa com um nó na garganta. Diante da marca oficial de 100 mil mortos nesta pandemia, inicio o texto pela reação visceral de luto que sinto, direto do estômago para a garganta. Revejo a morte da minha mãe há exatos três anos para tentar entender algo sobre luto. Não consigo. Por trás da marca de 100 mil mortes jazem vidas, uma tragédia pessoal reencenada 100 mil vezes. Destas tragédias, muitas delas evitáveis, nossas mentes nada entendem, senão visceralmente.

Quem não sente no ar o luto coletivo por 100 mil vidas perdeu a humanidade que nos une. Democracia depende dessa humanidade compartilhada em sentir o luto do outro como se nosso fosse, porque o é. Cem mil lutos pessoais impõem um trauma coletivo. Autoritarismo quer esmagá-lo no esquecimento; democracia, por sua vez, requer reconhecer nosso trauma coletivo e processá-lo com as armas que a democracia nos dá: política da vida contra a necropolítica diária.

Se cognitivamente essa dor não pode ser processada, nos restam os rituais de luto, pessoais e coletivos.

Humanizamos suas histórias pessoais quando damos nome a cada uma dessas 100 mil vidas perdidas. “Agora sei que trágico não é o momento. É a memória”, escreve Jacqueline Woodson no sensível romance “Um Outro Brooklyn”. Nele, Augusta, uma antropóloga que estuda o luto, volta para a sua cidade natal para o funeral do seu pai. Lembra, ao longo desta jornada, de como a morte é processada em diferentes culturas. “Na Índia, o povo hindu crema os mortos e espalha as cinzas no Ganges. O povo caviteño, que vive perto de Bali, enterra seus mortos em troncos de árvore”, lembra Augusta.

Rituais de luto são como melodias que nos permitem processar o horror.

Há séculos, negros e negras no Brasil têm desenvolvido tecnologias sociais para lidar com a dor de uma sociedade genocida. Lembro das mães de jovens negros e periféricos mortos pelo Estado, como as Mães de Maio. Lembro de suas histórias de luto. Lembro de como transformaram seu luto em luta para que outros jovens não morram como seus filhos morreram. Crianças pretas e periféricas recebem, desde 2019, treinamento de pânico dadas as operações policiais violentas nas regiões de escolas no RJ. Dados da ONG Redes da Maré revelam que a vida dos moradores das favelas da Maré é constantemente suspensa pela política de morte do Estado, tema que está nesta semana sendo julgado pelo STF.

A cor do luto, veja, é preta.

Entender a frieza de Bolsonaro diante da morte de 100 mil pessoas passa, necessariamente, por compreender que se trata em sua maioria de mortes pretas. Morre-se mais de Covid-19 nos distritos com maior presença de autônomos, donas de casa e pessoas que usam transporte público, revelam dados da Unifesp publicados na Folha neste sábado. São os navios negreiros dos corpos de homens e mulheres negros e pobres, os mais vitimizados pela pandemia, muitos dos quais sequer são contabilizados na estatística oficial. Os outros tantos milhares incontados.

Como lidamos coletivamente com o nosso luto por 100 mil mortes? É essa pergunta que tentou responder em 2019 Noëlle McAfee no livro “Fear of Breakdown” com uso de teoria política e psicanálise. Democracia, para ela, requer que lidemos com os traumas coletivos que o luto nos impõe. Autocratas, como Trump e Bolsonaro, querem esmagar o que há de humano e plural em sentirmos o luto por 100 mil mortes, eles querem que foquemos num passado mítico nacionalista onde um dia fomos grandes, onde vidas reais —aqui e agora— não importam.

Para McAfee, democracia requer o luto coletivo que existe no reconhecimento de que não há um passado mítico. Há o hoje, e nesse hoje processamos a perda desse passado mítico investindo na democracia cotidiana que existe em reconhecer —nas conversas de família, no congresso, nas redes sociais, neste jornal— o valor das vidas que se perderam.

Volto ao livro “Um Outro Brooklyn”. Escreve Woodson, lindamente: “Onde estaríamos agora se soubéssemos que havia uma melodia em nossa loucura?” Essa melodia que nos permite processar, juntos, o luto coletivo para que mais mortes não ocorram é a democracia.

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