Thomas L. Friedman

Editorialista de política internacional do New York Times desde 1995, foi ganhador do prêmio Pulitzer em três oportunidades

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Guerra da Ucrânia ainda reserva surpresas, e a maior pode ser para Putin

Conflito pode inadvertidamente ajudar a sustentar o planeta ao encolher a principal fonte de dinheiro da Rússia

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Londres

Veja este fato surpreendente: num momento em que os americanos não conseguem concordar sobre praticamente nada, tem havido uma maioria consistente a favor de darmos generosa ajuda econômica e militar à Ucrânia na luta contra a tentativa de Vladimir Putin de apagá-la do mapa.

É duplamente surpreendente quando se considera que a maioria dos americanos não conseguia encontrar a Ucrânia no mapa alguns meses atrás, pois é um país com o qual nunca tivemos uma relação especial.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante serviço religioso da Igreja Ortodoxa, em Moscou
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante serviço religioso da Igreja Ortodoxa, em Moscou - Alexander Nemenov - 23.abr.22/AFP

Sustentar esse apoio, entretanto, será duplamente importante à medida que a Guerra da Ucrânia se firma numa espécie de fase de "sumô" –dois lutadores gigantes, cada um tentando jogar o outro para fora do ringue, mas nenhum disposto a desistir ou capaz de ganhar. Embora eu espere certo desgaste conforme as pessoas perceberem o quanto essa guerra está elevando os preços globais de energia e dos alimentos, ainda tenho esperança de que a maioria dos americanos aguente firme até que a Ucrânia possa recuperar militarmente sua soberania ou fechar um acordo de paz decente com Putin.

Meu otimismo em curto prazo não vem das pesquisas, mas da leitura da história –em particular, o novo livro de Michael Mandelbaum, "The Four Ages of American Foreign Policy: Weak Power, Great Power, Superpower, Hyperpower". Mandelbaum, professor emérito de política externa dos EUA na Universidade Johns Hopkins (coescrevemos um livro em 2011), argumenta que, embora as atitudes dos americanos em relação à Ucrânia possam parecer totalmente inesperadas e novas, não o são.

Ao longo da história dos EUA, nossa nação oscilou entre duas abordagens amplas de política externa, explicou Mandelbaum em uma entrevista, ecoando um tema-chave em seu livro: "Uma enfatiza o poder, o interesse nacional e a segurança e está associada a Theodore Roosevelt. A outra enfatiza a promoção dos valores americanos e é identificada com Woodrow Wilson".

Embora essas duas visões de mundo estivessem frequentemente em competição, nem sempre esse foi o caso. E quando surgiu um desafio de política externa em harmonia com nossos interesses e valores, ele atingiu o ponto ideal e conseguiu obter amplo, profundo e duradouro apoio público. "Isso aconteceu na Segunda Guerra e na Guerra Fria", observou Mandelbaum, "e parece estar acontecendo com a Ucrânia."

Mas a grande questão é: por quanto tempo? Ninguém sabe, porque as guerras seguem caminhos previsíveis e imprevisíveis. O previsível em relação à Ucrânia é que, à medida que os custos aumentarem, haverá crescente dissidência –seja nos EUA ou entre nossos aliados europeus–, argumentando que nossos interesses e valores ficaram desequilibrados.

Eles argumentarão que não podemos apoiar a Ucrânia economicamente até o ponto da vitória total –ou seja, expulsar o exército de Putin de cada centímetro da Ucrânia– nem estrategicamente nos darmos ao luxo de buscar a vitória total, porque diante da derrota total Putin poderia liberar uma arma nuclear.

O que nos leva ao imprevisível: depois de mais de cem dias de luta, ninguém pode dizer como essa guerra terminará. Começou na cabeça de Putin e provavelmente só terminará quando Putin disser que quer que termine. Putin provavelmente sente que está dando todas as ordens e que o tempo está do seu lado, porque ele pode aguentar mais sofrimento que as democracias ocidentais. Mas as grandes guerras são estranhas. Não importa como elas comecem, podem terminar de maneiras totalmente imprevisíveis.

Deixe-me dar um exemplo, com uma das citações favoritas de Mandelbaum. É da biografia de Winston Churchill de seu grande ancestral, o duque de Marlborough, publicada na década de 1930: "Grandes batalhas, vencidas ou perdidas, mudam todo o curso dos eventos, criam novos padrões de valores, novos estados de espírito, novos climas, nos exércitos e nas nações, aos quais todos devem se conformar".

"A batalha entre a Rússia e a Ucrânia pelo controle da área no leste da Ucrânia conhecida como Donbass tem potencial para ser uma batalha desse tipo", diz Mandelbaum. Em mais de uma maneira. As 27 nações da União Europeia, nosso principal aliado, são na verdade o maior bloco comercial do mundo. Elas já agiram decisivamente para reduzir o comércio e os investimentos na Rússia.

Em 31 de maio, a UE concordou em cortar 90% das importações de petróleo da Rússia até o final de 2022. Isso não apenas prejudicará Moscou, mas também causará sofrimento real aos consumidores e aos industriais da UE, que já pagam preços astronômicos pela gasolina e pelo gás natural. Tudo isso está acontecendo, porém, num momento em que as energias renováveis, como a solar e a eólica, tornaram-se competitivas em preço com os combustíveis fósseis, e quando a indústria automobilística mundial está aumentando significativamente a produção de veículos elétricos e novas baterias.

Em curto prazo, nada disso pode compensar a queda nos suprimentos russos. Mas se tivermos um ano ou dois de preços astronômicos da gasolina e do óleo para aquecimento devido à Guerra da Ucrânia, "você verá uma mudança maciça no investimento dos fundos mútuos e da indústria em veículos elétricos, melhorias de rede, linhas de transmissão e armazenamento de longa duração que poderão afastar todo o mercado da dependência de combustíveis fósseis para renováveis", disse Tom Burke, diretor do grupo de pesquisa climática E3G, Third Generation Environmentalism. "A guerra na Ucrânia já está forçando todos os países e empresas a avançar drasticamente em seus planos de descarbonização."

De fato, relatório publicado pelo Centro de Pesquisa em Energia e Ar Limpo e pelo grupo de pensadores global de energia Ember, com sede no Reino Unido, descobriu que 19 dos 27 estados da UE "aumentaram significativamente sua ambição em termos de uso de energia renovável desde 2019, enquanto reduziam os planos de geração de combustível fóssil para 2030, visando se proteger de ameaças geopolíticas".

Vá entender: se esta guerra não explodir inadvertidamente o planeta, pode inadvertidamente ajudar a sustentá-lo. E, com o tempo, encolher a principal fonte de dinheiro e poder de Putin. Não seria irônico?

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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