Descrição de chapéu Guerra na Ucrânia Rússia

Se Putin usar arma nuclear na Ucrânia e vencer, outros farão o mesmo, diz especialista

Para integrante do Boletim dos Cientistas Atômicos, Ocidente deveria ter integrado a Rússia após a Guerra Fria

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São Paulo

Se o presidente Vladimir Putin empregar armas nucleares na guerra contra a Ucrânia e sair vencedor do conflito, isso irá encorajar outros atores com bombas atômicas a utilizarem o armamento para resolver suas pendências territoriais, Coreia do Norte à frente.

A análise é feita por Sharon Squassoni, 59, professora de relações internacionais da Universidade George Washington (EUA) com 30 anos de experiência em questões de desarmamento nuclear e membro do Conselho de Ciência e Segurança do prestigioso Boletim dos Cientistas Atômicos.

Míssil intercontinental Iars é lançado em teste de forças nucleares russas cinco dias antes da guerra na Ucrânia
Míssil intercontinental Iars é lançado em teste de forças nucleares russas cinco dias antes da guerra na Ucrânia - Ministério da Defesa da Rússia - 19.fev.2022/AFP

A entidade foi criada em 1947 por envolvidos na construção da bomba atômica americana, preocupados com os riscos de sua invenção. Além de promover pesquisas, o Boletim divulga todo ano a posição do ponteiro do Relógio do Juízo Final —que passou a abarcar, como risco existencial para humanidade além das armas nucleares, itens como a mudança climática e a desinformação.

Este ano, antes da guerra, ele foi mantido a cem segundos da meia-noite, nível mais próximo do apocalipse de sua história. Putin colocou suas forças nucleares, as mais poderosas do mundo ao lado das americanas, em alerta e sugeriu que irá usar a bomba caso alguma nação se intrometa no conflito, o que deixou a Otan (aliança militar ocidental) sem ação direta, apesar de apoiar a Ucrânia.

Analistas especulam se o russo poderia usar uma arma tática, de menor potência, em caso de se ver à beira da derrota ou para acelerar o fim do conflito. A Otan tem discutido como reagir se isso ocorrer, considerando que poderia haver contaminação radioativa de membros vizinhos à Ucrânia.

"Ninguém sabe se Putin vê alguma vantagem [em usar a bomba]. Racionalmente, não há nenhuma", disse a professora. Ela é moderadamente otimista, acreditando que é improvável que a situação escale para o uso de armas nucleares ou para um confronto com a Otan, mas considera o risco presente.

Para ela, as dificuldades russas na guerra podem desestimular conflitos entre países que eventualmente podem usar armas nucleares, como China, Índia e Paquistão. Mas ela diz que tudo muda caso Putin use a bomba, mesmo que sobre um local desabitado para dar um alerta, e vença a guerra.

Aí, ela aponta para a ditadura de Kim Jong-un como candidata a tentar resolver suas pendências com a Coreia do Sul, com quem vive em cessar-fogo desde 1953. Na semana passada, Pyongyang testou um míssil intercontinental com capacidade nuclear que, quando estiver operacional, pode atingir todo o território americano —Washington é a garantidora nuclear da segurança de Seul.

A professora aponta para erros do Ocidente no pós-Guerra Fria, como permitir a proliferação de armas nucleares táticas e não ter integrado a Rússia à arquitetura de segurança da Europa, o que poderia ter evitado a crise atual. Squassoni falou com a Folha por email.

Squassoni e Lawrence Krauss (esq.) observam o colega do Boletim dos Cientistas Atômicos Robert Rosner mover os ponteiros do Relógio do Juízo Final em 2018
Squassoni e Lawrence Krauss (esq.) observam o colega do Boletim dos Cientistas Atômicos Robert Rosner mover os ponteiros do Relógio do Juízo Final em 2018 - Leah Millis - 25.jan.2018/Reuters

Qual é o risco de uma escalada nuclear na crise da Ucrânia? Sempre há o risco de uma escalada quando países com armas nucleares se envolvem em conflitos, pois não temos "firewalls" na guerra. O fato de que a Rússia está em guerra com um vizinho, próxima a países da Otan e de que a Ucrânia pediu assistência do Ocidente aumenta os riscos de os russos ampliarem o conflito. Ninguém sabe se Putin vê alguma vantagem política ou militar em se aproximar mais do uso de armas nucleares. Racionalmente, não há nenhuma. É improvável que o uso de armas nucleares para assustar a Otan ou coagir a Ucrânia à rendição funcione.

O fim da Guerra Fria trouxe uma falsa sensação de segurança, mesmo com os alertas que a Rússia deu em 2008 e em 2014, sobre o risco de uma escalada nuclear. Houve complacência por parte do Ocidente? Acho que o Ocidente perdeu a oportunidade de conceber uma arquitetura de segurança diferente na Europa, uma que abrangesse a Rússia, e também reduzir drasticamente as armas nucleares, especialmente táticas. Mas a democracia nunca se enraizou na Rússia e Putin ficou mais ousado com o tempo. A janela de oportunidade não ficou aberta por muito tempo.

Como a sra. avalia o impacto do conflito em outros teatros que podem ver uma escalada nuclear? Alguns analistas sugeriram que a China pode ser castigada pela experiência da Rússia na Ucrânia. É muito provável que os EUA ajudem Taiwan, principalmente se os chineses usarem força militar sem justificativa, como a Rússia fez, e os taiwaneses provavelmente responderão com tanto entusiasmo quanto a Ucrânia.

É difícil ver como a experiência da Rússia afetará Índia/Paquistão/China. A doutrina nuclear do Paquistão se assemelha à da Rússia em alguns aspectos. O Paquistão sugeriu que usaria armas nucleares em seu próprio solo para impedir um avanço indiano convencional. Talvez as dificuldades da Rússia na Ucrânia façam a Índia pensar duas vezes sobre a utilidade de sua superioridade convencional diante de pessoas que defendem suas casas, mesmo quando não estão armadas com armas nucleares.

É claro que, se a Rússia usar uma arma nuclear e interromper o conflito a seu favor, valerá tudo para uma potencial escalada nuclear em outros casos em que disputas territoriais desencadearem conflitos. Nesse caso, talvez eu esteja mais inclinada a me preocupar com a península coreana.

A doutrina russa de 2020 prevê o uso de armas nucleares caso o Estado esteja em risco existencial, mesmo em um ataque cibernético. Putin disse em seu discurso de guerra que a Rússia estava sob risco existencial e então fez as ameaças conhecidas. Considerando que ele passou quatro meses negando a invasão enquanto reunia seus soldados, quão sério pode ser esse aparente blefe? Não acho que alguém acredite que a Rússia esteja sob risco existencial, mas isso não importará para Putin se ele decidir que é assim. O que importa é se os oficiais militares seguirão uma ordem para lançar um ataque nuclear.

Eles podem não ter problemas com um ataque de demonstração, por exemplo, em uma área remota sobre a água, mas podem achar difícil executar uma ordem que alvejaria civis ou que contaminaria uma grande área ou afetaria países além de Ucrânia.

Estou esperançosa de que Putin limite sua atividade nuclear a coerção e ameaças, em vez de usá-la. Ele deve no mínimo entender que quebrar o tabu nuclear fará dele um pária para sempre.

As armas táticas não estavam sob o guarda-chuva dos acordos de controle. Isso foi um erro? Os EUA e a Rússia retiraram as armas nucleares táticas desde o início de 1991. Foi fácil de fazer e voluntariamente feito por George Bush e Boris Ieltsin. A primeira prioridade no final da Guerra Fria era garantir que os acordos estratégicos fossem implementados e que o vasto complexo de armas nucleares da Rússia fosse seguro para que materiais e armas não desaparecessem. E, claro, para garantir que as armas em solo da Belarus, Ucrânia e Cazaquistão fossem desmanteladas e destruídas.

Armas nucleares táticas eram um problema menor. Embora tenham se tornado uma prioridade para os EUA, particularmente o Congresso, a Rússia nunca concordou com isso. Em retrospectiva, parece um erro não tê-las eliminado, como eliminamos até recentemente os mísseis terrestres de alcance intermediário sob o tratado INF, assumindo que elas são mais empregáveis ​​do que as armas nucleares estratégicas.

Não sei se isso é verdade, mas espero que não descubramos. De qualquer forma, foi um erro não abordar vários dos itens da agenda de controle de armas que a Rússia propôs ao longo dos anos, como limites nas defesas antimísseis.

Uma das críticas à Otan na crise diz respeito à falta de alternativas militares para deter a agressão russa, devido ao risco óbvio de escalada. Existe alguma saída para essa armadilha? A dissuasão é uma questão de percepções: Putin claramente acreditava que não enfrentaria oposição viável na Ucrânia, que a rendição seria rápida e que a economia russa resistiria às sanções, mas eventualmente elas seriam suspensas.

Ele não contava com o envolvimento da Otan —uma razão para tomar a Ucrânia agora é fechar para sempre a oportunidade de ela entrar na aliança. A Otan tem uma ampla gama de opções militares caso a Rússia ataque um país-membro. Ameaças nucleares russas contra uma aliança que contém três Estados com armas nucleares seriam de fato muito desaconselhadas.

No entanto, se alguns dos tratados de controle de armas que foram abandonados estivessem em vigor e funcionando, poderia ter sido mais difícil para a Rússia invadir a Ucrânia. O Tratado das Forças Convencionais na Europa [abandonado pela Rússia em 2007], o Tratado de Céus Abertos, o INF [de armas nucleares intermediárias na Europa, abandonados assim como o Céus Abertos pelos EUA a partir de 2018], todos esses foram mecanismos para regular a conduta militar e injetar transparência para construir confiança. Também é possível que nada teria impedido Putin, que ele está simplesmente empenhado em tentar voltar no tempo para restaurar o Império Russo.


RAIO-X

Sharon Squassoni, 59

É membro do Conselho de Ciência e Segurança do Boletim dos Cientistas Atômicos. Trabalha há 30 anos na área de não proliferação e desarmamento, tanto para o governo americano quanto para o Congresso. Foi diretora de programas de pesquisa do Centro para Estudos Estratégicos e Internacionais e do Centro ​Carnegie, ambos em Washington. É professora pesquisadora no Instituto de Política de Ciência e Tecnologia, na Universidade George Washington.

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