Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Tom Farias
Descrição de chapéu
Tom Farias

Em 'Sitiado em Lagos', Abdias Nascimento faz a defesa do quilombismo

Livro traz relatos irretocáveis sobre repressão da ditadura militar que buscava deixar autor 'sem-voz e sem-nome'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

Acabo de ler "Sitiado em Lagos", obra do ativista negro brasileiro Abdias Nascimento, morto em 2011, no Rio de Janeiro. A obra, publicada agora pela Perspectiva em segunda edição, tem como subtítulo "Autodefesa de um Negro Acossado pelo Racismo". É um grande texto/tese para se compreender o racismo no Brasil, do ponto de vista de um de seus mais genuínos pensadores e intelectuais, cujo nascimento completou, em 14 de março, 110 anos.

Capa do livro "Sitiado em Lagos", do ativista negro brasileiro Abdias Nascimento.
Capa do livro 'Sitiado em Lagos', do ativista negro brasileiro Abdias Nascimento - Reprodução/Ed. Perspectiva e Ipeafro

A publicação atual de "Sitiado em Lagos" surge quatro décadas após a primeira edição, quando Nascimento participou, em Lagos, na Nigéria, no ano de 1977, da segunda edição do Fesman (Festival Mundial de Artes e Culturas Negras e Africanas) —também conhecido pela sigla em inglês Festac (First Pan-African Festival of Arts and Culture).

Na edição original em inglês, o prefácio coube ao amigo e dramaturgo Wole Soyinka, que em 1986 ganharia o prêmio Nobel de Literatura.

Como se sabe, Abdias Nascimento é o maior nome do que se convencionou chamar de quilombismo no Brasil, talvez seu maior defensor e propagador, movimento comparado, guardadas as devidas proporções, ao de "négritude", conceito defendido pelos pan-africanistas Léopold Sédar Senghor e seus aliados, Aimé Césaire e Alioune Diop.

Abdias Nascimento (1914-2011) - Folhapress

No Brasil, Nascimento sempre remou contra a corrente nas afirmações de que aqui se vivia uma democracia racial. Dentro dessa bolha, e em pleno regime ditatorial militar brasileiro, que endurece suas regras de repressão e violência após 1968, ano do AI-5, é que vai acontecer o segundo Fesman, que reúne expoentes da música, das artes plásticas, da dança e do teatro, com representantes de diversos países, dentre os quais uma delegação afro-americana.

Nascimento, em 1977, estava na Nigéria, onde era professor visitante na Universidade de Ifé (hoje Universidade Obafemi Awolowo), convidado por Wande Abimbola, o diretor do Departamento de Línguas e Literaturas Africanas. Veio dos Estados Unidos, onde teve o passaporte cassado, numa clara investida da perseguição política que o rondava desde o Brasil, de onde saiu, às pressas, no ano de 1968.

Sua ida ao país africano, no entanto, na companhia da mulher, Elisa Larkin do Nascimento, só foi possível após a obtenção de um documento do Departamento de Justiça americano, que lhe dava a garantia de saída e retorno.

Este e outros climas vividos por Nascimento fazem parte dos episódios narrados por ele neste livro importante e maravilhoso. Ainda em "Sitiados em Lagos", traz relatos sem retoques sobre as condições impostas pela repressão, calcadas na ditadura militar brasileira, no intuito de deixá-lo "sem-voz e sem-nome", no que concerne as suas denúncias sobre o racismo.

O livro também registra momentos cruciais da política brasileira durante a década de 1970, de aproximação com os países africanos e de franca propaganda sobre a cultura ideológica da "democracia racial".

A atual edição expõe três grandes depoimentos que norteiam a verve e a inteireza do posicionamento combativo de Nascimento face ao racismo brasileiro, especialmente no regime militar.

Exatamente no primeiro deles, que dá título ao volume, mostra as mazelas e artimanhas militares para barrar a participação de Nascimento no segundo Fesman, onde ficou evidenciado o comprometimento da delegação diplomática brasileira com os órgãos repressores, atuando nos bastidores para impedir e para desacreditar Nascimento e suas teses no evento.

Nascimento relata nesse primeiro documento todas essas manobras, classificadas de "lama branquicefálica", e denuncia o conluio das autoridades, o lado oculto, sombrio e sórdido na produção de dezenas de "telegramas secretos", aos que ele acaba tendo acesso, com bombardeiros ideológicos, nos bastidores, para evitar sua participação. Essas "estratégia e prática de sítio" são aqui comentados por ele, além da transcrição de uma "nota oficial" da embaixada brasileira e o triste papel dos embaixadores no episódio.

A segunda e terceira partes do livro reproduzem a "Carta Aberta ao 1º Festival Mundial das Artes Negras", ocorrido em Dacar, em 1966, e "Carta Aberta à 2ª Conferência de Intelectuais Africanos e da Diáspora" (a segunda Ciad), que aconteceu em Salvador, no ano de 2006.

Nesta ocasião, durante a sessão solene de abertura, para chefes e ministros de Estado, Nascimento foi condecorado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva com a Comenda da Ordem do Rio Branco. Em seu discurso, o homenageado aproveitou para reforçar suas críticas com relação ao racismo, na condição de "um cidadão da África e do Brasil".

Merecem menções a apresentação escrita por Elisa Larkin, testemunha ocular da história e da luta de Nascimento, os prefácios de Molefi Kete Asante, que presenciou um homem "determinado" a dar voz aos afrodescendentes do Brasil no colóquio e José Maria Pires, o Dom Zumbi, arcebispo da Paraíba, que passou a "tomar consciência" de sua negritude e que esteve ao lado do "boicotado em Lagos" na serra da Barriga. Como se vê, a leitura deste livro é imperdível.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.