O subúrbio carioca já foi também o "refúgio dos infelizes", como já se referiu a ele o escritor Lima Barreto. A frase veste feito uma luva com a atenta leitura de "Estrela de Madureira", biografia que traça a trajetória da vedete Zaquia Jorge, de autoria de Marcelo Moutinho, que acaba de sair pela editora Record.
O bairro suburbano, dos mais conhecidos da zona norte do Rio de Janeiro, pelo seu agitado comércio, mas também pelas escolas de samba campeãs Portela e Império Serrano, foi palco de um teatro que abalou geral o mundo artístico da região –o "Teatro de Madureira", inaugurado em 1952, por Zaquia, e dirigido por ela até sua morte prematura, aos 33 anos, por afogamento, na deserta e desconhecida praia da Barra da Tijuca.
A corajosa façanha de abrir casa de espetáculos em pleno subúrbio carioca, dedicada exclusivamente ao teatro de revistas ou "teatro rebolado" —gênero popularizado a partir da década de 1930 e que escandalizou uma época e muitas gerações —, se deveu a essa atriz, empresária, dramaturga, multiartista e vedete, cujo nome virou referência no meio artístico brasileiro, por sua atuação no palco e no cinema, onde pontificou ao lado de nomes como Oscarito, Dercy Gonçalves e Grande Otelo.
Moutinho, em "Estrela de Madureira", apresenta um perfil preciso e humano de Zaquia Jorge, situando-a no seu tempo presente e vivido, com precioso panorama da cena artística da época. Consegue, com raro brilhantismo, historiar a evolução cultural sob a perspectiva do teatro e do cinema, resgatando figuras hoje esquecidas, como a própria Zaquia Jorge.
O subúrbio carioca, no livro, ganha expressivo relevo. Em "Estrela de Madureira", são resgatados a importância dos "arrabaldes" da cidade, uma cidade cujos holofotes eram voltados somente na direção do centro e da zona sul – ou seja, da Praça Tiradentes a Copacabana.
Ao trocar a chique zona sul por um local distante e de aspecto "rural", como a Madureira dos idos de 1950, Zaquia Jorge foi duramente criticada. Os jornais e a opinião pública não a perdoaram por querer entreter "o povinho inculto". O teatro ainda era coisa da elite, herança do período colonial.
O subúrbio, região longe do coração da cidade, do glamour dos calçadões da orla, onde pontificava os ricaços do momento, habituês da Confeitaria Colombo e dos salões do Copacabana Palace, sentiu a torcer do nariz e virada de cara, literalmente. Mas Zaquia insistiu e venceu. Tinhosa, provou que a "gente humilde" –como o poetizou Vinicius de Moraes, amigo de Pixinguinha, portanto, frequentador dos subúrbios -, era núcleo de pessoas mereciam teatro e arte.
Sua caminhada na contramão da história dos grandes negócios do entretenimento, cimentou a popularidade de Zaquia Jorge, o que levou ao sucesso do seu empreendimento artístico.
Quando se afogou, na tarde de 22 de abril –véspera do dia consagrado a homenagear São Jorge –, toda cidade, não só o bairro, "chorou de dor", como sintetiza o verso do samba "Madureira Chorou", composição de Carvalhinho e Júlio Monteiro, empresário e viúvo da artista.
Em 1975, foi a vez da escola de samba Império Serrano, histórica agremiação carnavalesca, pagar seu tributo a grande vedete, homenageada com o samba-enredo "Zaquia Jorge: Vedete do Subúrbio, Estrela de Madureira", conquistando o terceiro lugar no desfile de 1958, então realizado na Avenida Antônio Carlos, mas ganhadora do Estandarte de Ouro.
O legado de Zaquia Jorge deu raízes. Após a fundação do Teatro de Madureira, a região ganhou destaque e novas casas. Nos anos seguintes à sua inauguração, abriram as portas os teatros Armando Gonzaga, em Marechal Hermes (1954) e o Arthur Azevedo, em Campo Grande (1956) –ambos ainda em pleno funcionamento.
O livro de Marcelo Moutinho traz um ar de gostosa nostalgia para quem aprecia o subúrbio e gosta de sua cultura e sua gente.
Essa rica região, assim como a zona oeste, fadada ao isolamento de financeiro desde as modernosas reformas do início do século 20, lideradas por Pereira Passos, passou a ser apenas o "dormitório" dos operários madrugadores, que povoam os escritórios da Presidente Vargas e Rio Branco, ou as casas dos ricaços e bacanas.
O sucesso do teatro de Zaquia Jorge é também um deboche a essa "gente do bem", sempre empoada e metida. Por temporadas concorridas, no palco, ela valorizava o humor, a picardia, a sensualidade, as paródias que provocavam o riso e marcavam a originalidade da cultura suburbana.
Pelo seu pioneirismo, traço característico da sua personalidade, Zaquia Jorge, afinal, se imortalizou. O belo livro de Marcelo Moutinho, ele mesmo cria de Madureira, é o caminho para revisitar esses tempos tão gloriosos, mas que, infelizmente, não retornam mais.
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