Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Veny Santos

Entenda como o conceito de 'responsável' está atrelado ao racismo estrutural

Em vez de se revoltar com quem sofre em meio à masculinidade nociva, homens negros deveriam se reinventar

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Sujeito-homem. Nos fundões das capitais, nas periferias de todos os lados, nos tantos centros fora das áreas ditas “nobres” das cidades, nascem esses indivíduos que, já enquanto crianças têm suas infâncias atribuídas às estratégias de sobrevivência e exigência de uma postura sempre pronta para o pior. Prepara-se a cria para ser homem, antes mesmo de que ela tenha qualquer noção do que isso signifique.

É o proceder que precisa ser mantido, a dureza, o distanciamento quanto às questões emocionais, a aversão total ao que se entende por vulnerabilidade, o peito sempre pronto para a guerra, a mente afiada, a boca fechada, o olhar penetrante, sem risadinha, sem conversinha, nada no diminutivo. Tem que ter para trocar, tem que ser sem precisar se anunciar.

Quase como um rito de passagem silencioso, há de se tornar sujeito-homem para ser respeitado e, quem sabe, passar dos 18 anos ileso —física e moralmente.

Ele precisa crescer enquanto é pequeno, forçar os joelhos a aguentarem os tantos ralados, engolir a seco o que a vida lhe impõe goela abaixo, não levar desaforo para dentro de casa, só comida e respeito inquestionável pela mãe e, de repente, se lá estiver, pelo pai. Alivia a paixão com sexo submetido a uma virilidade muitas vezes compulsiva e coleciona desafetos para não ter que colecionar desacertos. “É tudo no meu nome”, bem versou Rappin’ Hood em seu disco de 2001.

Sujeito-homem ou sujeitado a ser homem num cenário de muitas faltas, ausências, ânsias, desgostos e conquistas que levam mais de 30 anos para se materializar em quatro paredes de um sobrado. O que resta ao sujeito-homem senão ir para as cabeças? Na dele, o que se passa? Todos os homens nas quebradas são esses sujeitos? Não. Nem todo garoto é preparado para ser sujeito-homem. Muito se deve à palavra “responsável” e dois significados atribuídos a ela.

“Ele é responsável, confio de olhos fechados”, “meu filho é responsável, sabe o que precisa fazer”, “esta vaga foi feita para uma pessoa responsável como você”, “continue sendo esse rapaz responsável, viu?”. Você é responsável, assuma o controle.

“Ele é responsável pelo erro!”, “meu filho não fez isso, mas dizem que ele é o responsável”, “você é responsável por tudo de ruim que lhe acontece!”, “a derrota é responsabilidade sua, deveria ter se esforçado mais”, “responsabilize-se, rapaz!”. Você é responsável, assuma as consequências.

Dois responsáveis. Dois pesos. A um, confiança, fé, estímulo, orgulho, capacitação, parâmetro, exemplo. Ao outro, culpa, consequências da inconsequência, mau exemplo.

Há quem seja criado para ser homem, apenas. Ter sua vida comum, suas conquistas, derrotas contornáveis pela crença em suas capacidades —também comuns— e uma trajetória com possibilidades dentro de um cenário no qual, de fato, imaginar é possível. Homem responsável, só.

Sujeito-homem, quando consegue algum tempo para pensar —e não divagar—, precisa ser rápido e pontual, firme, para que consiga dar seus pulos e se manter no corre. Pressão constante, competição incessante contra estatísticas e “histórias únicas” cujo desfecho é sempre por sua culpa, não mérito. As pernas precisam ser mais compridas do que as daqueles que tentam aplicar a rasteira, levando-o sempre para mais longe, a começar de si mesmo. Sujeito-homem responsabilizado, e só.

Quando nos pedem para sermos responsáveis por quem e como somos, o que nos demandam, efetivamente? Que sejamos mais conscientes e racionais quanto às nossas masculinidades, assumindo a capacidade de reconstruí-las, ou que apenas nos sintamos culpados por ela?

Sujeito-homem que lida consigo mesmo ou se culpa —e aceita ser culpado— por ser quem é sem agir pela mudança? Sujeito-homem tivemos que ser para chegar até aqui. Não se trata de assumir uma postura irresponsável. Trata-se de ser responsável o bastante para lidar com posturas irresponsáveis.

Deixo aqui uma reflexão que propus há alguns anos enquanto estudava sobre “masculinidades negras” e seus impactos na construção do sujeito “homem negro” vivendo no Ocidente.

A escritora bell hooks —assim em minúsculo, a pedido dela—, em sua obra "We Real Cool: Black Men and Masculinity" discute, entre outros aspectos, o uso da palavra "responsável" e como seu significado está atrelado ao racismo.

Há dois tipos de pessoas "responsáveis". Dois tipos com cores e medidas diferentes. A escritora chama a atenção para um homem negro responsável que entende que sua forma de ser e estar no mundo não serão plenas se ele reproduzir aquilo que o branco o obrigou a seguir como "norma do que é ser homem".

Em vez de lamentar ou se revoltar consigo e com quem sofre em meio à sua masculinidade nociva, este homem negro deverá, segundo hooks, reinventar-se e se resgatar para, então, encontrar novamente seu devido lugar na sociedade —aquele cujo amor opera tanto quanto a razão.

Sujeito-homem, responsável ou responsável?

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