Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Descrição de chapéu jornalismo mídia

Jornalismo comunitário deveria ser a regra, e não uma subcategoria

Se a imprensa não tiver senso de comunidade, ela estará restrita ao universo de quem não vai além dos bairros centrais

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A quem caberá nos contar? Perguntei-me enquanto redigia estas linhas. Por dias, lembrei-me do meu início no jornalismo. Nada de especial: achei que a escrita era algo com o qual eu conseguia lidar e precisava garantir um emprego melhor para ajudar em casa. Creio que meu começo tenha sido, então, pelo viés do pragmatismo, sem deslumbres e esperanças, como costuma ser daqui "do outro lado da ponte".

Um dos primeiros exercícios foi a produção de reportagem. O tema era livre. Jamais esquecerei da pauta que escolhi, não por achá-la, hoje, original demais, mas pelo fato de que ainda a considero indispensável.

"A idade do bairro é a idade de sua gente." No texto, busquei a pessoa mais velha da quebrada onde vivo para que me relatasse o "nascimento" daquele lugar, e comparei seus relatos com o que havia na mídia sobre a região. A senhora, uma mulher negra que afirmava já ter alcançado seus cem anos e cuja voz parecia ter sido feita para a narração de histórias, descreveu não apenas a geografia do espaço recém-habitado, como também a das relações entre as primeiras famílias —onde cada uma ficou, por qual motivo, como se ajudavam e como sobreviviam. Pouco me recordo do texto, mas não me esqueci do propósito —contar sobre nós mesmos.

À época, meu professor informou que havia, no jornalismo, um termo específico para o tipo de material que produzi. "Comunitário", disse-me. No ano passado, durante uma participação que fiz para um programa da Rádio Heliópolis, o mesmo termo veio à tona e fui questionado a respeito desta prática específica.

Minha resposta foi curta, num primeiro momento, mas depois se desenrolou no questionamento que ainda carrego e me faz, aqui, escrever o que escrevo. "Mas não cabe a todo jornalismo ter senso de comunidade e ser, na prática, comunitário?" Mesmo que parte de si seja retórica, a pergunta ainda carece de respostas.

Comunitário: aquele jornalismo que relata fatos ocorridos nos bairros, vilas, regiões e áreas nas quais as populações são colocadas à margem do interesse público. Interessam, no máximo, a si mesmas, como insinua a dita "grande imprensa".

Uma forma genuína de resistência, esse jornalismo subcategorizado, que data de tempos antigos, algo por volta de 1833 e com o nome de O Homem de Côr. Primeiro periódico que se dedicou a tratar dos assuntos ligados a negros no Brasil. Trazia em si as pautas que desenhavam a realidade das comunidades no país —comunidades estas que cresceriam a cada ano pelas ruas e cantos, mas desapareceriam dos holofotes da imprensa só não quando fossem o elemento noticioso dentro dos cadernos ensanguentados ou culturalmente elitizados cuja busca obsessiva pelo "exótico" enquanto entretenimento ridicularizava legados, espiritualidades, estéticas e expressões artísticas.

Atualmente, cabe um verso de "A Vida é Desafio", dos Racionais MC's, para sintetizar a situação: "Quinhentos anos de Brasil e o Brasil aqui nada mudou". Se mudou, foi pouco.

O jornalismo, hoje, passa a se disfarçar de inclusivo quando cria seus próprios quartos de despejo. Um chapéu, uma subeditoria, um caderno específico para manter as histórias, fatos e relatos dos "outros" no seu devido lugar. Às vezes, este jornalismo para à porta e pergunta: "E aí, dona Maria, como está a vida? Tudo tranquilo no seu bairro?".

Ouve, sente um alívio por poder não pensar —durante alguns segundos— nas notícias importantes do país que lhe tiram o sono, e emite um apático "Boa noite".

Notícias importantes de um país cuja maioria da população é composta de donas Marias. O cotidiano é composto por donas Marias. Todas as pautas atravessam a realidade das donas Marias. São elas, as donas Marias, São Matheus, Cidade Tiradentes, Jardim Romano, Ângela, Helena, Pantanal. Estão elas, ainda que silenciosas enquanto limpam a sujeira dos patrões, em cada notícia.

Se o jornalismo não se faz comunitário, poderemos, então, chamá-lo de "jornalismo de prédio" ou "jornalismo de condomínio", restrito apenas a informar o que interessa àqueles que não se sentem parte de nada que ultrapasse os limites da portaria ou a vista das câmeras de segurança.

Penso constantemente nos tantos símbolos dentro do termo "comunidade". Ainda se vive a separação entre o jornalismo e o jornalismo comunitário —e não por questões meramente editoriais. Prega-se a guetorização da prática jornalística onde estão, como escreveu Eliane Brum, as vidas que ninguém vê —tal qual não se lê quem as escreve. Dispensam-se os estudos das teorias da comunicação e conceitos como "newsmaking" e "agenda setting" para entender como ainda é construída a realidade. Basta ter os olhos bem abertos e, ainda assim, não se ver nas manchetes a partir da sua própria comunidade.

Quando as regiões mais afetadas por todas as áreas que compõem a sociedade —política, economia, cultura, tecnologia, saúde— terão o devido destaque? Quando uma zona sul inteira da cidade e seu universo de pautas não forem tratados como à parte "jornalismo universal". Se de um lado há, sim, discriminação, do outro existem jornalistas que fazem da profissão estratégia de sobrevivência. Há a quem caberá nos contar.

Jornalismo é comunidade. Jornalismo é comunitário. Se as comunidades não cabem nas primeiras páginas e nas capas, se não valem tanto assim, reforço: a quem caberá nos contar.

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