Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Veny Santos

Não existe marginalidade quando somos o centro de nossas histórias

Literatura marginal como aquela feita por Ferréz e Sacolinha joga luz sobre quem nunca se viu retratado por ninguém

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Marginal. Aqui, substantivo comum a depender de onde a pessoa vem ou para onde ela não vai. Tão comum que chega a ser pejorativo.

Quem nasce nas ditas regiões periféricas das grandes metrópoles tende a ser chamado ou tratado como tal. Do centro, não estão eles apenas distantes. São eles todos “aqueles distantes”. Não há dúvidas, afinal todos os dias a lonjura se comprova. Cotidiana, normal e imposta. Uma questão não só geográfica, mas também de perspectiva. O espaço entre uns e outros é de, no mínimo, um Itaim Paulista 3459-23.

Durante os tantos anos que vivi nos limites do quarteirão de meu bairro, jamais pensei nessa distância. Fui percebê-la ainda cedo, no entanto. Tive que trabalhar. Precisei ir à “cidade”, como dizia minha avó.

As regras do jogo, como são postas, colocam-nos no nosso indevido lugar. Marginal também é adjetivo. “Esse aí mora longe”, “aquele ali é o da [Vila] Fundão”, “de onde você é? Longe, hein? Já fui lá uma vez”. Uma vez para eles, todo dia para nós. Seja como for ou como voltar, não interessa. Sempre marginal. Não precisa ter roubado nada, basta ser do fim do mundo.

O que apresento aqui é um retrato, não reclamação. É o que é e também o que dizem ser. Cito a marginalidade imposta a quem mora nos “cantos” para afirmar aqui o momento em que se pode, finalmente, inverter os olhares e se perguntar —para depois perguntar aos demais— “quem está à margem de quem?”. “Quem é marginal?” A literatura, no meu caso, deu o caminho.

Plínio Marcos e João Antônio foram os primeiros a me fazer levantar essa questão. De autoria do primeiro, “Querô” e “O Abajur Lilás” captaram a minha atenção pela forma como mostram personagens, cenários e diálogos. Da amplitude de um bairro em Santos à claustrofóbica conversa no quarto minúsculo de um motel. Das portas de prostíbulos à galeria Alaska, em Copacabana. Eram as ruas e a gente das ruas que estavam ali sendo retratadas por quem tão bem as observou.

Se no dia a dia suas desgraças passavam despercebidas, esses dois autores me mostraram que elas eram justamente a contracultura dentro de uma tradição literária avessa às realidades nuas e cruas fora da “elite cultural”. João Antônio, inclusive, fazia praticamente um glossário do idioma falado pelos chamados marginais.

Quando me deparei com as obras deles –e de outros como Roberto Freire, em “Travesti”, e “Madame Satã: Com o Diabo no Corpo”, de Rogério Durst— percebi algo: esses escritores retratavam os que eram considerados à parte da sociedade. Em razão disso, os que os liam acabavam por classificar suas obras como marginais ou retratos da marginalidade. Eram leitores cujas origens estavam longe dos narrados. Seriam eles, então, “aqueles distantes”?

O escritor João Antônio (1937-1996) durante uma partida de sinuca
O escritor João Antônio (1937-1996) durante uma partida de sinuca - Divulgação/Arquivo pessoal

Invertendo as perspectivas, os apartados mudam, literalmente, de lugar. Marginais se tornariam aqueles que não estavam no centro das histórias que retratavam outras vidas tão reais quanto as suas. Sugiro como convite à reflexão essa dinâmica entre distância e proximidade que a literatura dita marginal cria dentro e fora das páginas de livros. Quem é marginal? Quem está fora do centro onde os demais redigem suas histórias na literatura viva do dia a dia? Três livros me orientaram perante tais questões.

Rael trabalhava, colava com os amigos, corria pelo certo e ajudava a família. Na metalúrgica, vivia o trabalho como o trabalho —para quem não é patrão— é: forçoso. Em seu centro, o Capão Redondo, a literatura dita marginal se fazia nas prosas com os chegados, nos pensamentos que escapavam à luta pela sobrevivência, na diversidade que pressupunha muitas estratégias que o desviasse do crime. Rael foi escrito e descrito por Ferréz. Os dois, personagem e autor, estavam no olho do furacão batizado de “Capão Pecado”. Ao ler a história, fica evidente que quem escolheu cada palavra não só observou como também foi observado. Estava no meio, não à margem.

O mesmo aconteceu com Burdão. Da Vila Clementina, no lado leste, sua luta para suportar a morte de toda a família incluía também as várias batalhas travadas por quem convive com o crime de perto. O escritor Sacolinha (Ademiro Alves de Sousa), autor do clássico “Graduado em Marginalidade”, narra como se desenhasse com as palavras todas as particularidades da região onde esteve e das pessoas com quem esteve —mesmo que na ficção. Quando li o livro, muito vi do meu bairro, não me senti distante. Pelo contrário, senti-me lá porque estava justamente aqui —no meu centro.

Mais uma vez com Ferréz, “Manual Prático do Ódio” trouxe à tona as já conhecidas inveja e traição que estampam as coisas como elas ainda são nos diversos centros espalhados pela capital. Jovens que competem entre si numa corrida cujo prêmio, no final das contas, é não morrer tão cedo. Jovens que foram obrigados a competir.

Os três livros não se limitam à violência. Eis aí um ponto que, ao meu ver, entrega quem não sabe chegar a tais histórias com os olhos bem abertos, fica cego ao lê-las porque não vê o que há nas entrelinhas e, por fim, torna-se incapaz de sair delas com algum conhecimento a mais. Esta literatura dita marginal põem novamente em foco quem nunca se viu contado por ninguém. Os que sempre estiveram à margem na perspectiva dos outros, mas no centro de suas próprias histórias. Distantes são e estão, na verdade, aqueles que não sabem chegar ou escrever como nós.

Marginal. Substantivo comum. Tão comum que a todos, sem exceção, cabe quando se trata de perspectiva. Costumo dizer que nunca estamos à margem ou à periferia quando somos o centro de nossas próprias histórias. Marginal é quem nos lê.

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