Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Luto por estátuas queimadas é menos importante do que construir novas lideranças

Almir Suruí, Sandra Amorim, Paulo Galo e muitos outros são figuras fortes e essenciais, mas seguem perseguidas

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Penso nos que ficaram inconsoláveis ao verem uma escultura de concreto ser chamuscada. Penso pouco, mas penso.

Sentiram em seus âmagos a tristura de ver uma figura cuja história, memória e representação remetiam a algo que, de fato, lhes doem demais: conviver com a ausência, um suposto pioneirismo às custas de sangue dos povos originários somado ao de africanos escravizados, guiado pelo desejo incontrolável de dominar conquistar e espoliar.

Os que sentem reclamam não por quem era a figura, mas pelo que ela representou. “Viúvos de estátua", praticamente, separados de um passado com o qual, se pudessem, até hoje estariam casados.

Compreendo a dor, ainda que repudie pelo que ou quem soluçam os que choram diante do cimento. Entendo o apego a um "histórico de glória” por parte de seus antepassados que lideraram “grandes expedições”.

Por entender, inclusive, é que afirmo que a mim e aos meus interessa mais construir lideranças de carne e osso. Tão de carne e osso que não serão elas parte de nossas vidas apenas se forem erguidas como monumentos de 13 metros de altura. Podem até ser, mas de concreto deixarão legado.

Acredito ser preciso refletir sobre o que se entende pela figura de liderança, o que se espera dela e como ela pode ser construída. Lideranças, no plural, pois são diversas formas de poder dentro das também diversas sociedades existentes.

Penso: quais lideranças estamos criando hoje? Quem são suas referências? Quem elas serão amanhã? De quem nos lembraremos? Como nos lembraremos? Como a história as registrará?

Rememoro, então, um livro que propôs o questionamento sobre como pensar em líderes sem se limitar ao padrão ocidental imposto como universal. Em “A Sociedade Contra o Estado”, de Pierre Clastres, estão artigos antropológicos que descrevem as formas de organização política e social dos povos originários da América do Sul —aqueles caçados e mortos por bandeirantes— a partir de suas perspectivas.

Os textos permitem enxergar o caráter dominador dos modelos europeus baseados em autoridade e obediência, acúmulo de poder e mecanismos de controle. Entre os 11 títulos reunidos pelo autor, “Troca e Poder: Filosofia da Chefia Indígena” é o que destaco.

Não irei resumir o texto aqui. Limito-me a citar pontos que me marcaram e que contribuíram para a reflexão acerca da “liderança”. Publicado em 1962, o artigo descreveu características dos chefes de sociedades nativas. Entre os aspectos expostos estavam: os líderes não mandam, não detêm poder acumulado em si e não são autoritários; seu papel era o de pacificadores dentro das sociedades e mediador quando havia conflitos externos; seu caráter devia prezar a generosidade; sua oratória era elemento fundamental.

A figura do chefe se fazia expressão do que o povo precisava e de quem este povo cobrava. Era o líder aquele que ocupava tal posição para servir ao povo, trabalhar tanto —ou até mais do que ele— e ser capaz de usar a palavra (oratória) como seu principal instrumento no intuito de evitar violência. Conduzia sua gente para onde sua gente decidia ser conduzida.

Sua substituição poderia ocorrer a qualquer momento caso a comunidade percebesse que ele não atendia às suas necessidades ou se tentasse impor algo.

Sem autoritarismo, era ele incumbido de resolver os problemas do povo. Nas batalhas, assumia o posto junto aos guerreiros. No final delas, perdia este lugar, uma vez que a postura coercitiva não lhe cabia.

Não era o líder a expressão de quem conjurava o “Leviatã” dos brancos europeus. Pergunto: e hoje, o que nos vem à mente quando pensamos em “líder”, especificamente o político, detentor do poder e dever de organizar e conduzir a sociedade? E amanhã, qual liderança queremos? Como ela deverá ser?

Não se trata de propor como solução única os aspectos identificados nas lideranças nativas. Infelizmente, fomos privados de tais saberes desde muito cedo e, consequentemente, estamos longe de conseguir aplicá-los sem dificuldade.

Entretanto, servem tais aspectos como pontos de reflexão e articulação, sim, para quem estamos construindo enquanto futuras lideranças. Olho para minha estante de livros e vejo nomes de pessoas que foram a expressão dos anseios de seus povos. Ancestrais que lutaram por libertação. E o que temos hoje?

Por mais que seja difícil de ver nas capas de jornais, há lideranças comunitárias fortes, ativas, mas que na atual estrutura de poder são perseguidas, presas e tratadas como inimigas de seus semelhantes —a exemplo de Almir Suruí, Sandra Amorim, Paulo Galo, entre outros. Pessoas de carne e osso, que sangram, que perdem familiares, que são retiradas de seus lares, e que nem se declaram lideranças. São porque os seus pedem que sejam.

Preocupo-me com os que estão na função de pensar em nossa gente e agir por ela, e não em quem se limita à “viuvez” por entulho.

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