Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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No fundo, Rafael Braga pagou bem mais do que os R$ 0,20

Jovem preso por levar desinfetante, confundido com coquetel molotov, é a lembrança mais forte que tenho de junho de 2013

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Final de expediente, redação agitada. Eu também. Queria voltar logo para casa, pois o longo caminho até a zona leste, saindo da oeste, cobrava muito tempo e dinheiro. A maioria das pessoas que trabalhavam comigo vivia pela região do centro.

Estavam se organizando para irem até o local onde aconteciam as manifestações contra o aumento de tarifas de transporte público em São Paulo, durante o agora decenário junho de 2013. Não era pauta a cobertura dos atos, então a motivação para a presença se dava muito pela empolgação de alguns e algumas diante da chance de se sentirem parte de um momento histórico.

Manifestantes do Movimento Passe Livre atravessam a ponte Octavio Frias de Oliveira sobre o rio Pinheiros. Imagem faz parte do filme 'Junho', de João Wainer - Lalo de Almeida/Folhapress

Quando avisei que não me juntaria, o questionamento mais clichê de quem acreditava que a vida era uma novela e nela, para variar, atuava como protagonista, foi feito: "Mas é importante a gente estar lá, sabe? Não é só pelos R$ 0,20".

Eu sabia, mas o que eu sabia não se sobrepunha a quem eu conhecia: a polícia. A polícia e seus alvos óbvios. A polícia que se me pegasse, não me trataria como uma Helena de Manoel Carlos.

Minha resposta foi curta: "Não tenho pai rico para me pagar advogado. Se eu for preso, já era para sempre". Levantei-me, pensei em qual caminho faria para desviar dos protestos e quando cheguei na linha vermelha do metrô paulistano, silêncio e cansaço geral.

Uma manifestação diferente, de sobreviventes de todo dia, não apenas de 2013. Do fundo, nem da esquerda ou direita, mas do fundo, vimos tudo, pragmáticos.

Comecei a ter noção mais aguçada de como as classes médias —progressistas ou conservadoras— não passavam de médias. No meio, juntas, a priori parecidas, formavam a massa que começava uníssona e terminava dissonante entre si e entre todos. Tinha, sim, bastante gente de quebrada, mas até aí, nenhuma surpresa, só desgosto ao ver muito irmão e irmã pagando na pele a conta dos atos.

Rafael Braga Vieira. Negro, preso por carregar substâncias desinfetantes em recipientes de plástico tratados pelas autoridades como se fossem coquetéis molotov. Preso durante as manifestações e, em seguida, no regime aberto, por ter sido "pego" com quantidade pequena de droga e tratado como traficante. Condenado como se traficante fosse.

Pouco vi —para não dizer que nada vi— nos documentários com compilados de reportagens sobre os atos da época menção a Rafael e sua história. Também não o vi, naquele tempo, em vídeo "V de Vinagre" nem a gritar "Sem partido!".

Recordo-me bem, por ter integrado eles, dos protestos realizados por mídias independentes e organizações pretas autônomas pedindo liberdade e justiça para o catador de materiais recicláveis que nada tinha a ver com o tal junho de 2013.

Quando os ataques da polícia diminuíram, tirei um dia para ir às manifestações. "Qual é a fita dessa gente?", levei como pauta pessoal. Fui sozinho, porque sozinho eu sabia bem o que fazer para não ser visto e percebido. Ali eu queria observar para tentar entender qual era a fita real. Acompanhei o ato uma única vez. Pensei nele por vários anos.

Do fundo, chamou-me a atenção pessoas nas entradas das estações de metrô tentando convencer quem estava voltando do trabalho a ficar com frases como "Isso também é por vocês". Ouvi comentários do tipo "quando as periferias acordarem", tratando o povo que levantaria cedo para recolher estilhaço de vidraça de agência bancária como se pilotasse um Megazord, formado pelos quatro cantos da cidade, capaz de salvar a pátria.

Vi sujeito emocionado —no auge de sua profética tentativa de parecer ameaçador perante o estado— soltar "porque se as manifestações chegarem na periferia, aí vai ficar louco". Pensei, à época: se chegar, mal sabe ele que a gente é que vai pagar o preço com a vida, ou sabe, mas não se importa. Para quem sobreviveu a maio de 2006, estarão sempre frescas as memórias do que acontece quando o asfalto arde nas quebradas. As Mães de Maio que o digam.

Rafael Braga é a lembrança mais forte que tenho de junho de 2013. Ele poderia ter sido qualquer um de nós, aqui, do fundo.

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