Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Veny Santos

Marielle Franco, seis anos depois, segue presente e negra, em palavra e pessoa

Quem não a conhecia pelo nome, ao vê-la nas manchetes a reconheceu negra e, com ela, tudo que lhe atravessava

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Negra, a palavra e a pessoa, ainda incomoda. No dia 15 de março de 2018, lembro-me, infelizmente como se ontem fosse, das marchas que, unidas na principal avenida de São Paulo —a Paulista—, formavam uma só via arterial. Pulsávamos no ritmo das batidas das solas sobre o desanimador asfalto. O silêncio imperava. Podíamos gritar, cantar um lamento, sussurrar notas sutis de uma incredulidade dissonante, mas era silêncio e só. Por que a mataram? Negra, a palavra e a pessoa, havia incomodado demais, sabíamos de prontidão.

Quando a notícia sobre o assassinato de Marielle Franco ganhou destaque no noticiário, pouco me recordo dos veículos que a descreveram primeiramente como pessoa negra a partir da palavra. Enfatizou-se seu cargo de vereadora e o partido ao qual pertencia. Por outro lado —aquele que sentiu o impacto da notícia na pele, no sangue e no autorretrato—, o baque da imagem trouxe não só a marca, mas também a origem da vítima.

Quem não conhecia Marielle pelo nome ou mandato, ao vê-la estampada nas manchetes a reconheceu negra e, com ela, tudo que lhe atravessava. Uma mulher negra foi assassinada de maneira cruel e evidentemente planejada. Uma das tantas que habitam nossas casas, lembranças e histórias. Vereadora, sim, importante lembrar sempre, mas antes negra, marcada pela palavra que revela a origem da pessoa. Origem africana. Sim, também importante lembrar sempre.

Escadaria Marielle Franco, na rua Cardeal Arcoverde, no bairro Pinheiros, em São Paulo
Escadaria Marielle Franco, na rua Cardeal Arcoverde, no bairro Pinheiros, em São Paulo - Eduardo Anizelli/Folhapress

Durante as manifestações em protesto contra o crime, o lamento coletivo do povo negro mais uma vez velava uma irmã vítima do ódio racial misturado a outras motivações perversas —como as que, nesses últimos dias, foram investigadas e tornadas públicas. Sem qualquer pudor, movimentos ditos "liberais" iniciaram um trabalho de difamação para tentar destruir a negra, a palavra e a pessoa, enquanto símbolo de resistência contra a corrupção, racismo, feminicídio e outras importantes lutas sociais. Incomodou muito a negra, tanto a palavra quanto a pessoa.

Evitar o termo passava (e ainda passa) a falsa sensação de que não há, nunca, um fator racista na violência de brancos contra negros, quando estes são exterminados apenas por serem quem são e como são. Negra, a palavra e pessoa, deve ser evitada. É o que parece. Caso contrário, corre-se o risco de ter que usá-la no plural e, mais do que incomodar, acomodar-se-ão essas gentes negras todas ao direito de se aquilombar e alargar o significado de raça para além das reducionistas e falidas noções eurocentradas, cuja elaboração objetivou desumanizar.

Negra, a palavra e a pessoa, hoje diz muito, em vários tons, timbres, formatos, mas sempre negra, na marca e na origem. Por isso ainda incomoda e é evitada. Quando não opacada.

A caminhada seguiu pesada pela quinta-feira, 18 de março de 2018, na avenida Paulista. Negras eram as várias pessoas que incomodaram boa parte da cidade, do estado e do país. Marielle foi atacada nos anos seguintes, até nos dias de hoje, mas também inevitável e inspiradora se tornou. Suas fotos sorrindo pelas comunidades do Rio de Janeiro também são marcas importantes que retratam a origem. Lembram à negra gente de que enquanto viva consegue ir além da morte, desgraça, violência e pobreza. Por isso incomoda um tanto. Ao significar mais do que alguém indigna de humanidade, negra, a palavra e a pessoa, vira alvo dos incomodados que não se mutam.

Caminhei calado o trajeto todo. Negra, a palavra e a pessoa Marielle Franco, seguia-me em pensamento. O incômodo era outro. O de não conseguir falar e ver, vivas, palavra e pessoa.

Seis anos se passaram desde o seu assassinato. As investigações caminham para etapas conclusivas. Entre os desconfortos que as verdades tendem a trazer para a família, presente está Marielle, mulher negra, agora —e sempre— como palavra viva.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.