Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Mente casamento

Emma Thompson e o olho

A sexualidade humana é uma grande e deliciosa brincadeira

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tive a oportunidade de assistir em sequência à peça "A História do Olho" de Janaina Leite, ao filme "Boa Sorte, Leo Grande" de Sophie Hyde, com Emma Thompson e Daryl McCormack, e aos espetáculos do Grupo Corpo "Gil" e "Onqotô".

A peça faz parte da pesquisa da atriz, diretora e dramaturga Janaina Leite, que vem se dedicando à encenação de questões sobre corpo, sexualidade, obscenidade e pornografia. Quem já assistiu a "Stabat Mater" e "Camming 101 noites" sabe que suas performances podem ferir sensibilidades.

"A História do Olho" se refere ao livro que o filósofo George Bataille publicou sob o pseudônimo de Lord Auch, em 1928. A obra, que só levaria a assinatura de Bataille após sua morte, narra as aventuras de uma dupla de adolescentes lidando com as questões do sexo e da morte numa obsessão frenética, por vezes escatológica.

Cena do filme 'Boa Sorte, Leo Grande', com Emma Thompson e Daryl McCormack sentandos no chão, em frente à cama
Cena do filme 'Boa Sorte, Leo Grande', com Emma Thompson e Daryl McCormack - Genesius Images

O teatro de Janaina Leite é tido como intenso e provocativo por trazer ao palco a problemática do desejo sem fazer concessões. O inusual começa pelo elenco, que foge aos cânones da beleza vulgar e segue pelo caráter explícito da encenação.

A suspensão corporal ao vivo, realizada pelo grupo Pombo Morcego —há outros colaboradores a depender do dia—, "golden shower" (sim, aquela prática que o presidente adorava evocar), "fisting", dildos, gêneros não binários e não heterossexuais, enfim, aquilo que ainda parece chocar as mentalidades em 2022 é apresentado no palco da forma mais despretensiosa e cômica. O que nunca falta na encenação é o respeito e o consentimento. Aliás, quando observada por esse prisma, a suspensão corporal pode ser uma experiência estética sublime.

Já o filme com Thompson e McCormack causou furor ao apresentar a septuagenária e shakespeariana atriz nua em pelo, para deleite da plateia acostumada a ver os truques anti-idade da indústria cosmética e cinematográfica. Assisti-la na sequência da peça permitiu conectar duas leituras da sexualidade, embora a segunda em enquadre mais convencional. A quebra de paradigma ali aparece no fato de a mulher contratar um prostituto, invertendo o retrato corriqueiro dos homens com profissionais do sexo. Pesa o fato de se tratar de uma mulher pudica, na casa dos 60.

O encontro da professora aposentada com um garoto de programa —misto improvável de michê, analista e terapeuta sexual— retoma por outras vias a centralidade da fantasia no erotismo e permite reconhecer o lugar da anatomia. A beleza do rapaz é milimetricamente explorada, mas é a partir da lembrança de um encontro fortuito na adolescência que a personagem recupera a via do seu desejo e de sua excitação. Ter se reconhecido sendo "devorada" pelo olhar de um homem foi o que lhe despertou a sexualidade adolescente. Mas não basta ser olhada, como as mulheres costumam ser. Que uma mulher possa olhar se revela crucial em dado momento.

Por fim, temos o Grupo Corpo, esse presente que a família Pederneiras colocou no mundo em 1975 e desde então segue hipnotizando plateias. "Gil" (estreia) e "Onqotô" (2005) são apresentadas como homenagem aos 80 anos de Gil e Caetano, esses mestres em insuflar vida à sua volta. Saímos com a sensação de receber algo impossível de retribuir, algo que precisa ser compartilhado. Um transbordamento erótico que a plateia comunga e carrega para os seus.

Ao final, diante de três visões tão díspares, o resultado é a confirmação de que a sexualidade humana é uma grande e deliciosa brincadeira —na inegociável condição de que haja respeito e consentimento— e que apenas sob o reinado de Eros teremos alguma chance de sair dessa lama.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.