Se eu escrevesse numa Olivetti, diria que meu artigo desta semana resta amassado no cestinho de lixo, abortado diante dos acontecimentos estarrecedores de 8 de janeiro de 2023. Vinha de curtas, mas restaurativas, férias com a família, na esperança de começar um ano menos angustiado com a situação político-social.
O respiro de alívio, embalado numa das mais belas cerimônias de posse que se tem notícia, mostrou-se necessário depois de quatro anos de sofrimento.
Mas existe uma diferença entre o cessar-fogo que se espera em momentos específicos —para recolher os mortos ou fazer cerimônias religiosas— e a ilusão de que a guerra acabou.
Enquanto chorávamos de emoção ao ver indígenas e negros subindo a rampa, relevávamos que o ovo da serpente do fascismo no Brasil, chocado pelo discurso bolsonarista, já eclodiu há tempos. Mais do que isso, a serpente tem trocado de casca sob nossos olhares complacentes.
A extrema direita, que se organiza de forma inédita em nosso país, de inédita não tem nada. O Brasil foi fundado por homens brancos que não chegaram aqui com a intenção de construir um país. O objetivo sempre foi explorar, igualmente, a terra e o povo que aqui encontraram e voltar para a Europa ricos. Os africanos entraram na conta apenas para certificar que a exploração do território e da gente fosse até a última gota. Essa aspiração não cedeu um milímetro desde então e está escancarada no discurso nacionalista de quem destrói tudo por onde passa e bate continência para a bandeira norte-americana.
O Brasil se divide hoje entre os que querem construir um país a partir da reparação e da cura das feridas abertas por sua brutal mestiçagem e pela destruição ambiental e aqueles que querem garantir a continuidade do projeto original de subjugar povo e terra.
Essa divisão, descrita por Sueli Carneiro em entrevista antológica a Mano Brown, se escancara na resistência às cotas raciais. Carneiro lembra como, após a abolição, negros recém-libertos sem bens e sem assistência foram largados à própria sorte, enquanto imigrantes brancos europeus —e depois japoneses— receberam terras e subsídios para trabalhar aqui. As cotas sempre existiram, como aponta brilhantemente a filósofa, mas elas nunca haviam sido direcionadas para negros e indígenas.
O discurso bolsonarista, que já tem 522 anos, é indissociável da miragem de "modernização" econômica. Como alertava Pierre Bourdieu já nos anos 1970, o neoliberalismo se apodera da retórica de modernização para impor o retrocesso que mantém e aprofunda as desigualdades. É o jogo Bolsonaro-Guedes que permite que eleitores tão diferentes como o tiozão alucinado na frente do quartel e o farialimer instruído elejam o mesmo presidente. Ambos replicam o antigo sonho colonial brasileiro de ser um imenso Portugal —branco, europeu, rico—, mas agora na versão Miami. (Aliás, Portugal, que ainda é destino almejado por "patriotas" desavisados, vai para o terceiro mandato de António Costa, primeiro-ministro socialista).
Embora o horror e o trauma de ver os símbolos da democracia destruídos levem tempo para serem elaborados, o futuro do país depende da celeridade e da firmeza das respostas dadas a esse ultraje.
Impunidade e leniência têm sido indicativos do projeto de (não) país que subjaz aos nossos governos. O sofrimento que causam na população são mais profundos e duradouros do que o que se materializou na destruição dos prédios desse fatídico domingo.
É fundamental celebrarmos a luta pela construção do país, mas só na condição de nos mantermos atentos e fortes.
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