Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Mente

Cabe um filho aí!?

Sociedade tenta equalizar parentalidade enquanto cobra imagem de sucesso e felicidade

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Vai se tornando comum a ideia de que o estilo de vida atual não comporta filhos sem que algum sintoma pipoque. Tamanho é o caos, que o puerpério se tornou o paradigma maior da parentalidade, como se a confusão do começo se eternizasse. Lembrando que o puerpério é um tempo que cobra faturas diferentes para quem gestou e pariu, mas do qual ninguém sai ileso. (Salvo os pais que foram "comprar um cigarro" e não voltaram mais.)

Como é possível que a condição mais básica de continuação da nossa espécie tenha se tornado sinônimo de adoecimento?

Insistimos no erro de pensar que a escolha por ter filhos é assunto exclusivamente de foro íntimo. Os efeitos desastrosos do déficit demográfico nas grandes economias mundiais provam o contrário. E, como a economia continua sendo o fator capaz de obrigar as sociedades a se moverem, os incentivos para que casais continuem a procriar passam a saltar das cartolas, como se esse apoio não tivesse sido desde sempre necessário.

A mão de uma criança segura uma flor sobre a mão do pai
Blanka Sejdová por Pixabay

A questão é que a mesma sociedade que tenta equalizar a chegada de um filho com a vida de pais e mães é aquela que coloca na produtividade e na imagem de sucesso e felicidade todas suas fichas. Mas, como ainda não nasceu o bebê neoliberal, a criaturinha que chega continua a embaralhar nossas pretensões de planejamento e controle.

O melhor curso de preparação para a chegada de um bebê é aquele que demove pais e mães da arrogância e da exigência de estarem preparados. Aprender meia dúzia de truques sobre como manter limpo, alimentar e colocar para dormir um bebê é fundamental, mas supor que é disso que se trata é temerário.

Os macetes para cuidar de uma criança são imprescindíveis e, com a interrupção da transmissão geracional, passaram a ser ensinados por especialistas em cursinhos apressados durante as gestações. Sai na vantagem quem cuidou de irmãozinhos mais novos, fato cada vez mais raro nas famílias de poucos filhos como as atuais. Com o tempo, o próprio bebê nos ensina o que funciona para ele —o que, provavelmente, não funcionará com o filho seguinte.

O perrengue logístico toca no ponto nevrálgico de nossa época: a administração do tempo. Na atualidade, não importando a ocupação profissional, trabalhamos ininterruptamente para as "big techs". Somos os operários que empurram o fluxo de informações para que Bezos, Zuckerberg, Musk, Gates, Page façam sua contabilidade incalculável. Como se sabe, a outra coisa que demanda 24 horas sobre sete dias são os filhos, o que gera uma incompatibilidade de agendas para além do horário do expediente tradicional.

Filhos nos sujam, descabelam, atrasam nossos horários, mudam nossos meticulosos planos, enfim, estragam a foto do Instagram (exceto quando já se tornam minioperários das mídias a serviço da ganância de familiares).

Filhos escancaram as diferenças de gênero mesmo nos casais mais desconstruídos, pois não há boa intenção no privado que faça frente às injustiças estruturais. Isso quando há boa intenção, claro.

Filhos não aceitam pais e mães de Instagram e nos viram do avesso de tempos em tempos, ao longo de toda a vida, nos obrigando a confrontos dolorosos com nossa autoimagem. Essa é, disparado, a parte mais difícil e promissora de qualquer parentalidade, e para isso nunca estaremos preparados.

Enfim, se quisermos enfrentar o déficit demográfico, teremos que criar condições empregatícias e logísticas melhores, encarar para valer a divisão sexual do trabalho e, igualmente importante, abrir mão da miragem de nós mesmos.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.