Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Descrição de chapéu Mente

A humanidade evoluiu?

É preciso assumir o cuidado de si e do outro como valor máximo da cultura

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Mulheres são criadas de forma bem diferente dos homens para o bem e para o mal. Para o mal, quando são tolhidas em seus sonhos, tendo seu universo de realizações restrito a estereótipos de fragilidade, imperativos de beleza e desqualificação intelectual.

Para o bem, quando são treinadas para se sensibilizarem e para cuidarem de si e dos outros. Afinal, o cuidado mútuo é a única prova verdadeira de civilidade da nossa espécie. As conquistas tecnológicas celebradas como índices da evolução humana só se revelaram formas cada vez mais eficientes de autodestruição.

Um exemplo entre inúmeros outros é o da volta do uso das munições cluster pelos EUA. Trata-se de um armamento abolido em mais de cem países por deixar como resíduo bombas que explodem nas mãos de crianças e civis décadas depois do fim dos conflitos para os quais foram adquiridas.

Cena do filme 'Herói de Sangue', de Mathieu Vadepied
Cena do filme 'Herói de Sangue', de Mathieu Vadepied - Marie-Clémence David/Divulgação

O Brasil, que é um dos três maiores produtores das bombas de fragmentação, não assinou o tratado, obviamente. Estima-se que 80 milhões desses artefatos estejam espalhados pelo mundo prontos para explodir. Uma das alegações de Joe Biden para seu uso é a falta de pronta-entrega de outros armamentos. Basicamente, o mercado da guerra anda muito aquecido.

Em "Herói de Sangue" (2022), de Mathieu Vadepied, assistimos à máquina de destruição humana e seu âmago colonizador. O filme se passa na Primeira Grande Guerra, quando pastores e aldeões senegaleses foram arrancados de suas famílias para lutar pela França, país invasor.

Trata-se da lógica da masculinidade que só traz dor e devastação para o mundo. Ali, onde jovens se matam em nome da glória e do reconhecimento, um pai luta pela vida de seu filho de 17 anos.

A obra tem muitas camadas: política, racial e histórica, absolutamente atuais. Expõe a oscilação entre emancipar-se das figuras masculinas hegemônicas ou alienar-se até o limite da própria morte (assista em um cinema de rua perto de você).

A figura de fundo, que raramente aparece nos filmes de guerra, é a da mulher. Ela costuma servir de alusão ao erotismo em meio à mortandade. É aquela cujo corpo ainda não foi revelado para o rapaz virgem ou aquela de quem sente saudades.

A mãe e a irmã do rapaz em "Herói de Sangue" são figuras femininas tão apagadas que, embora habitem a base da pirâmide da violência, se tornam invisíveis. São elas que restam quando seus protetores e responsáveis saem para guerrear. O mundo delas, supostamente idílico por estar fora da devastação, resta tão silencioso que soa como parte da natureza.

Mutilação genital, casamento infantil, violência doméstica, feminicídio, enfim, a sujeição feminina que serve de base para o mundo masculino está lá como algo a não ser aludido, soterrado pela singela alegoria da família de pastores. Mulheres podem guerrear e o fazem sempre que necessário, mas o valor do feminino não está culturalmente associado à guerra. Ele se encontra referido à esfera da reprodução de cuidados, isento de qualquer tipo de glória.

Se houvesse uma "feminização" da sociedade —meu entendimento vai na contramão de algumas leituras psicanalíticas—, ela significaria a colocação do cuidado de si, do outro e do entorno, como valor máximo da cultura. Não se trata de incensar as mulheres ou de promover uma pretensa essência feminina, pelo contrário. Trata-se de desmontar esses estereótipos e assumi-los como valores máximos da humanidade independentemente do gênero.

A desconsideração absoluta do cuidado e de quem o realiza e a hipervalorização das conquistas territoriais e tecnológicas são a prova cabal de que não evoluímos como gostamos de alardear.

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