EUA anunciam envio de bombas polêmicas à Ucrânia, e Otan lava as mãos

Washington vai fornecer armas de fragmentação condenadas porque vê contraofensiva de Kiev lenta

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São Paulo

Diante de uma crise potencial entre seu principal membro, os EUA, e a mais rica nação europeia do clube, a Alemanha, às vésperas de uma vital reunião de cúpula, a Otan lavou as mãos acerca do fornecimento das polêmicas bombas de fragmentação para a Ucrânia.

"A Otan não tem uma posição sobre elas. Cabe aos governos decidir. Estamos ante uma guerra brutal, em que munições cluster [como as bombas são conhecidas] são usadas por ambos os lados", afirmou nesta sexta (7) o secretário-geral da aliança militar, Jens Stoltenberg.

Estágio de lançamento de foguete russo com bombas de fragmentação em quintal de Kramatorsk, na Ucrânia
Estágio de lançamento de foguete russo com bombas de fragmentação em quintal de Kramatorsk, na Ucrânia - Genia Savilov - 3.jul.22/AFP

O governo Joe Biden anunciou nesta sexta que irá atender ao pedido da Ucrânia para receber as bombas, sofrendo críticas internas nos EUA, porque considera que os aliados estão ficando sem munição. Por sua vez, os ministros alemães Boris Pistorius (Defesa) e Annalena Baerbock (Relações Exteriores) disseram que seu país não apoia a ideia, até por ser signatário da convenção que proíbe esse armamento.

A questão é que bombas do tipo carregam dezenas ou centenas de explosivos menores, dispersados por grandes áreas quando acionada. São especialmente eficazes contra concentrações de tropa, objeto do pedido de Kiev, que não tem armas de precisão suficientes para a contraofensiva iniciada em 4 de junho.

Além de serem armas brutais, muitas bombas menores não explodem e ficam no ambiente como minas terrestres, matando e ferindo pessoas —particularmente crianças, que não discernem o perigo do que manipulam. Desde 2010 há a convenção adotada por 111 nações proibindo a fabricação e seu emprego.

Dos 31 países da Otan, 23 são signatários do documento. Mas EUA, Ucrânia e Rússia não fazem parte do time, o que os exime de quaisquer punições internacionais. Como disse Stoltenberg, chefe da aliança ocidental, nesta guerra ambos os rivais usaram as bombas, mas ele enfatizou que Kiev o fez "de forma defensiva". O Brasil também não apoia a convenção e é exportador do armamento.

A Human Rights Watch criticou o envio, citando o risco a civis no longo prazo. O conselheiro de segurança nacional americano, Jake Sullivan, até disse que este foi o motivo para a demora na decisão, mas argumentou que os russos estão usando o armamento e que o terreno em que ela serão usadas já está cheio de bombas do tipo.

Horas depois, na mesma linha, Biden disse à rede americana CNN que essa foi uma "difícil decisão". No Pentágono, o subsecretário Colin Kahl deu razões mais objetivas: "Nós queremos que os ucranianos tenham artilharia suficiente para mantê-los lutando no contexto da contraofensiva, e porque as coisas estão indo um pouco mais devagar do que alguns esperavam".

Por sua vez, o assessor presidencial ucraniano Mikhailo Podoliak preferiu desancar a ONG, chamando o relatório da entidade que cita o uso da arma na guerra por Kiev e Moscou de "imoralidade". "O número de armas importa. Então, armas, mais armas, mais armas, incluindo munições cluster", postou no Twitter.

Direito humanitário à parte, Stoltenberg tirou da sala mais um potencial bode para a reunião da aliança que ocorrerá em Vilnius (Lituânia), na terça (11) e na quarta (12). Nesta sexta, ele, reconduzido ao cargo de secretário-geral do grupo por mais um ano, tentou encaminhar outra polêmica: o pedido da Ucrânia para "medidas concretas" sobre sua entrada no clube, como disse o presidente Volodimir Zelenski na véspera.

Enquanto o líder ucraniano afirma compreender que é impossível a Otan receber um país em guerra, porque isso vai contra sua carta de fundação, ele busca estabelecer garantias de segurança para etapas posteriores ao conflito —sem, claro, admitir que pode perder qualquer território para a Rússia, que neste momento ocupa cerca de 20% de seu país, invadido no final de fevereiro de 2022.

"Por 500 dias, Moscou trouxe morte e destruição para o coração da Europa. Nossa cúpula vai mandar uma mensagem clara: a Otan permanece unida, e a agressão russa não será bem-sucedida", disse Zelenski.

Na prática, o que ele tem a oferecer é o estabelecimento do Fórum Otan-Ucrânia, instrumento de consultas em funcionamento desde que o Ocidente assumiu a tarefa de armar e treinar Kiev contra os russos.

A Rússia diz que assim a Otan luta por procuração contra o Kremlin. Por outro lado, a dissimulação retórica está na base da invasão que promove, chamada de "operação militar especial" para evitar implicações legais de uma declaração de guerra.

A falta de envolvimento direto de forças da Otan e de ataques russos além da fronteira ucraniana tem um motivo claro: o de evitar a Terceira Guerra Mundial. Essa sombra persiste sobre todos os movimentos e escaladas do conflito, contudo. Isso explica o ritmo lento, crescente, da ajuda militar ocidental.

Pouco a pouco foram caindo tabus: primeiro, artilharia de precisão e blindados, depois tanques e baterias antiaéreas, seguidos de caças soviéticos usados e, agora, discute-se o fornecimento de aviões ocidentais. Ainda assim há o temor, na Otan, de que trazer a Ucrânia mais para perto mude a natureza da guerra.

Isso pode não acontecer, apesar de o "casus belli" central de Vladimir Putin fosse impedir a adesão de Kiev à Otan. Ele já guerreara na Geórgia em 2008 com esse objetivo e, desde 2014, desestabilizava uma Ucrânia hostil ao Kremlin com a anexação da Crimeia e a guerra civil no leste russófono do país.

Até aqui, contudo, só viu a Otan se reforçar, apesar das divisões pontuais. A Finlândia abandonou sete décadas de neutralidade e entrou no bloco neste ano, e a Suécia espera que nesta cúpula seja resolvido o impasse colocado pelo veto de Turquia e Hungria à sua adesão. Ali, o que vale é política: os suecos sinalizaram mais dureza com a oposição curda exilada no país ao condenar um ativista nesta semana, justamente o que o presidente Recep Tayyip Erdogan espera. Os húngaros jogam no ritmo de Ancara.

Tudo indica que as divergências serão resolvidas, especialmente se os EUA aceitarem vender mais material militar para os turcos. Erdogan, aliás, irá receber ainda nesta sexta Zelenski, que passou por Bulgária, Eslováquia e República Tcheca desde quinta (6), visando a aumentar o apoio à sua demanda por mais material bélico para a contraofensiva que ele mesmo diz estar abaixo do ritmo esperado.

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