Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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O que pode a vida diante do horror?

Nos subterrâneos de Marte, a memória da Terra será nossa eterna tortura

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As imagens de extrema violência que nos chegam pelas mídias são tidas como atos perpetrados por sujeitos desumanos. Da mesma forma, a vítima, para ser eliminada sem dó nem piedade, precisa ser vista como um objeto, pois só assim ela é passível de ser destruída sem culpa. Desumanização da vítima e do algoz são condições da barbárie perpetradas pelos cidadãos do bem.

Em "Assassinos da Lua das Flores", Martin Scorsese retrata uma situação assombrosa e verídica. Pode um marido apaixonado conciliar o amor com a destruição da família da esposa e até da própria amada? Curiosos são os desígnios do desejo humano que o diretor octogenário tem a coragem de sustentar. Existem muitos "amores" e alguns talvez não merecessem receber esse nome, mas quem somos nós para bater esse martelo?

Molly, nativa da etnia osage, é amada por seu marido, como se ama um adorado animal doméstico, cuja perda seria dolorosíssima, mas não impensável. Nada que uma nova esposa não resolva. Obviamente não se trata de ela ser vista como um semelhante estrito senso, mas de ser um sujeito de segunda classe, por quem até se sente amor, mas que na hora do aperto pode ser eliminado. O aperto aqui é a ganância para herdar o dinheiro dos nativos osage, donos de terras encharcadas de petróleo. Daí os casamentos inter-raciais comuns na época e os assassinatos decorrentes, que o livro e o filme denunciam.

Ao vermos a vilania humanizada lembramos dos casos aparentemente incompreensíveis nos quais se destrói o ser amado sem dó nem piedade por motivo torpe. A mulher infiel, o filho gay, a filha trans, a amante grávida… são aqueles que se atreveram a contrariar o desejo dos que diziam amá-los.

Não é sem relevância que o personagem de Leonardo DiCaprio —um bom ator, mas que ainda se atrapalha nas caretas— tenha acabado de vir da 1ª Guerra Mundial. Como em toda guerra, inocentes são violados, mortos e mutilados em nome da patriotada fundamentalista bancada por governos que só querem saquear seus vizinhos sem nunca pisar no front. São eles que darão as mãos em acordos de paz escusos, depois de terem destruído gerações (recomendo assistir ao bem feito e polêmico "Golda"). Daí, para o personagem massacrar os osages —a outra "raça"— é só um palito.

A história da humanidade é por demais eloquente para que acreditemos que haveria um povo melhor do que outro. Somos todos capazes de amar e de cometer os piores crimes. O governo que não comete atrocidades —contra seu próprio povo ou contra os demais— que dê um passo à frente.

Testemunhamos, no entanto, a existência de povos mais sábios e de povos mais toscos quando se trata da sobrevivência coletiva e da visão de futuro. Nossa cultura, infelizmente, é aquela que caminha para a autodestruição com um sorriso maníaco nos lábios. Os subterrâneos de Marte nos espreitam e os que lá chegarem terão a lembrança da exuberância da Terra como eterna tortura.

O último livro de Paul Preciado, "Dysphoria Mundi: o som do mundo desmoronando" (Zahar, 2023), aposta numa insurreição pacífica e inescapável de todos os que se veem à margem por não corresponderem ao diminuto círculo dos considerados humanos. Segundo o autor, os últimos não serão os primeiros, porque é a própria lógica hierárquica que deve desmoronar.

O que nos mantém resistindo ao pior em nós? Está aí uma pergunta que só pode ser respondida um a um. No meu caso, trata-se de uma obstinação em lidar com o estranho em mim, que cria efeitos de interesse pelo humano.

Além disso, resisto porque prefiro a Terra.

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