'Assassinos da Lua das Flores', de Scorsese, expurga culpa por massacre indígena

Filme estrelado por Leonardo DiCaprio e Robert De Niro retoma capítulo esquecido da história dos EUA por meio do true crime

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Leonardo DiCaprio e Lily Gladstone em cena do filme

Leonardo DiCaprio e Lily Gladstone em cena do filme "Assassinos da Lua das Flores", de Martin Scorsese Divulgação

Cannes (França)

Um campo aberto preenche a tela com suas cores bucólicas nos primeiros minutos de "Assassinos da Lua das Flores". Indígenas caminham por ali até que, com uma fúria súbita, um líquido negro e viscoso irrompe do solo, cobrindo os personagens enquanto uma voz explica que o plano de isolar aquela população dos Estados Unidos ricocheteou.

Numa tentativa de esconder todos eles, as autoridades deram àqueles povos originários terras de valor inexpressivo. Mas o destino quis que elas fossem, na verdade, um grande reservatório de petróleo, criando, assim, uma nova elite naquele fim de mundo.

A introdução ao filme, a mais ambiciosa investida da Apple no mundo cinematográfico e que chega nesta semana aos cinemas, em parceria com a Paramount, não esconde certo deboche. O narrador não é isento, ele escolhe um lado na história que está prestes a se desenrolar.

"É um filme que fizemos com muita humanidade, e deve haver um reconhecimento [do massacre dessas populações]", disse Martin Scorsese, diretor de "Assassinos da Lua das Flores", à reportagem no último Festival de Cannes, onde o filme teve sessão especial.

Americano de raízes italianas e, portanto, sem relação direta com aquele pedaço de história, Scorsese quer cutucar as feridas abertas do que claramente considera uma relação covarde que os brancos estabeleceram com os indígenas ao longo dos anos.

Leonardo DiCaprio, Lily Gladstone, Martin Scorsese e Robert De Niro no tapete vermelho de "Assassinos da Lua das Flores" no Festival de Cannes - Loic Venance/AFP

Ele o faz reciclando sua fórmula consagrada, mas não esgotada. Por meio das tragédias pessoais de seus personagens, o cineasta filma uma tragédia em nível nacional, sem poupar o espectador de violência, remorso, dor e desilusão. E, como em boa parte de sua filmografia, a brutalidade física e óbvia é menor que a psicológica e subjetiva.

O cérebro de um indígena escapando por um buraco em sua cabeça não choca mais do que o grito de horror de Lily Gladstone, atriz que é a grande descoberta do filme, ao tomar conhecimento da morte. Palavras doces de falsos aliados, também, ferem mais do que as armas que empunham.

Tudo elevado à máxima potência do sofrimento, sem descambar para o dramalhão, ao deixar claro que aquela é uma história real, por mais esquecida que tenha sido nas últimas décadas. Fotos de indígenas em preto e branco, que abrem o filme e parecem falsas de tão desconhecidas e inimagináveis, reforçam a sensação de apagamento.

"O que fascina nesse filme é que ele é uma parte não contada da história americana, é um microcosmo de uma situação que se arrasta até os dias de hoje, não só nos Estados Unidos, mas na Ásia, no Brasil. Ainda há pessoas afetadas por essa tragédia [o massacre de populações indígenas], então a abordamos da melhor forma possível", diz Leonardo DiCaprio, protagonista e produtor que encheu o set de consultores indígenas.

"A história de amor entre os nossos personagens é uma alegoria. A Mollie expressa amor incondicional por alguém que não a merece e que só exige mais. Essa é a natureza exploratória de uma terra colonizada", afirma Gladstone, que é da etnia blackfoot. "Mas ninguém com quem falamos negou que havia amor entre eles", acrescenta DiCaprio.

Leonardo DiCaprio e Lily Gladstone em imagem do filme "Assassinos da Lua das Flores", de Martin Scorsese
Leonardo DiCaprio e Lily Gladstone em imagem do filme "Assassinos da Lua das Flores", de Martin Scorsese - Divulgação

Eles vivem Mollie e Ernest Burkhart, personagens reais retratados no livro "Assassinos da Lua das Flores: Petróleo, Morte e a Origem do FBI", de David Grann, que serve de base para o filme. Como num true crime, a trama narra a onda de assassinatos que assombrou a tribo osage, em Oklahoma, nas décadas de 1910 a 1930.

Abastados pela descoberta de petróleo em suas terras, os indígenas se tornaram presa fácil depois que o governo decidiu que, incapazes de cuidar da própria fortuna, eles deveriam ter guardiões —advogados, empresários ou cônjuges brancos, mais interessados em dar um golpe do que zelar por aquela gente.

Mollie casou com Ernest, um homem branco, também pela conveniência de ter certo controle sobre sua fortuna —era mais fácil pedir ao marido que tirasse dinheiro do banco do que a um estranho apontado pelo governo. Foi assim com muitos ao seu redor, que foram morrendo pouco a pouco em condições estranhas e não devidamente investigadas.

Outra figurinha carimbada dos filmes de Scorsese, Robert De Niro vive o fazendeiro William Hale, que fala o idioma dos osage, os recebe em sua casa e constrói escolas e hospitais. É uma espécie de padrinho, mas incapaz de controlar as mortes, ocorridas, em teoria, por "doença debilitante" ou "melancolia" —algum problema de saúde, como diabetes, ou suicídio.

De Niro vai mais longe e compara os personagens autoritários e dissimulados de "Assassinos da Lua das Flores" a Donald Trump. "Figuras como essas vêm e vão. Há coisas que você nunca poderia imaginar que aconteceriam. Eu odiava o Trump desde o começo, mas não pensei que ele era de fato uma pessoa má. Ele é genuinamente insensível, estúpido, um sociopata."

"Ele é um cara que não tem senso do que é certo e o que é errado, como esses personagens. Mas a sociedade, agora, está tentando reconhecer isso. Faz parte das dores de ser um país diverso. É preciso corrigir isso, se realmente queremos ser esse tipo de país", diz.

Originalmente, DiCaprio interpretaria o agente do FBI que, lá pelo terceiro ato das três horas e 26 minutos de filme, chega a Oklahoma para enfim investigar os assassinatos, que hoje especialistas acreditam passar da centena. A história traria mais da sua perspectiva, mas Scorsese percebeu que os indígenas deveriam estar no centro.

Por isso, Jesse Plemons tomou o personagem, deixando para DiCaprio metade do casal protagonista formado com Lily Gladstone. Mais importante do que contar essa história, vem dizendo Scorsese, é quem a conta. E ele deixa isso claro na catártica cena final, um expurgo de culpa que levou o público ao delírio no Festival de Cannes.

Assassinos da Lua das Flores

  • Quando Estreia nesta quinta (19), nos cinemas
  • Classificação 14 anos
  • Elenco Leonardo DiCaprio, Robert De Niro e Lily Gladstone
  • Produção EUA, 2023
  • Direção Martin Scorsese
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