Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Apostas para 2024

Passada a ressaca, o começo do ano nos leva a pensar onde nosso olhar se detém

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Em "Pedágio" (2023), filme de Carolina Markowicz, vemos uma mãe ir se atrapalhando com a obstinada tarefa de salvar o filho. O problema é que ela pretende salvá-lo de sua orientação sexual, quiçá, até de seu gênero. O filme, que tem nas locações e fotografia um dos pontos altos, mostra o ambiente intoxicado das falsas crenças e expectativas, sem perder uma oportunidade de usar do humor. Humor inadvertido do próprio ridículo de se imaginar que para o desejo humano haveria coerência, controle ou cura. E assim fomos presenteados com essa pérola do cinema, com atuações belíssimas de Maeve Jinkings e do estreante Kauan Alvarenga, ambos premiados em festivais nacionais e internacionais, além de indicações e prêmios de melhor filme e direção. Enquanto seguimos preocupados com a sexualidade alheia, faz-se vista grossa para um mundo em colapso ambiental e moral - não se trata do mesmo, afinal? As quebradas de cubatão não poderiam ser uma escolha mais acertada para confrontar o tema.

'Pedágio', filme de Carolina Markowicz
'Pedágio', filme de Carolina Markowicz - Divulgação

Passada a ressaca, o começo do ano nos leva a pensarmos nossas apostas para 2024, onde nosso olhar se detém, aquilo pelo qual nos empenhamos a ponto de resumir nossa existência a sua conquista.

Com a psicanálise aprendemos que se o desejo humano é inflexível isso não significa que sempre possamos dar-lhe vazão, tampouco podemos nos eximir da nossa responsabilidade por ele. Seguimos negociando entre o desejo e sua realização a partir da realidade imposta pelo mundo e pelo desejo dos demais. Além disso, a alienação ao desejo do outro, que funda o psiquismo humano, requer um trabalho de separação para que nos tornemos nosso desejo algo próprio. Daí que grande parte do que consideramos como aspirações pessoais podem ser só uma forma de tentar satisfazer as expectativas alheias.

"Ninja Baby", filme norueguês de Yngvild Sve Flikke, sobre uma jovem que se vê gestante e tem que decidir o que fazer com isso, assistimos o doloroso processo de reconhecimento do próprio desejo para além das expectativas do outro e de si mesmo. Não é fácil, pois sempre implica em perdas, vive-se com isso. A definição de tornar-se adulto está em jogo aqui: assumir os efeitos dos próprios atos, sejam conscientes ou inconscientes.

Na virada de 2022 lançamos nossas flechas carregadas de expectativas e de sonhos para 2023. Agora nos cabe refletir onde caíram e se representavam mesmo o que almejávamos, pois se o desejo é algo que só se conhece a posteriori, esse é o momento de ponderar sobre a diferença entre as realizações e a satisfação que trouxeram. Satisfações sempre parciais, como nos ensina a psicanálise, para que continue sendo necessário relançar as flechas na direção da vida que resta.

Refletindo sobre o evento mais marcante de 2023 para cada um de nós podemos nos surpreender com a singeleza da resposta. Ou ainda, podemos descobrir que todas as viagens, encontros, amores, realizações e perdas se tornaram uma grande massa apressada de eventos que pouco fomos capazes de reconhecer e viver.

Antes de lançar as flechas para 2024 e passar os próximos 12 meses correndo atrás de seu rastro, é interessante aproveitar a ressaca e a azia para conseguir uma trégua do imperativo atual de produtividade. Os ditames sociais assumidos sem reflexão são a marca da alienação do nosso desejo às expectativas dos outros. Ser obrigado a participar de uma suposta cura gay, por exemplo, é um tipo de violência. Identificar-se com essa imposição, no entanto, é ainda mais violento porque é quando alienamos nosso desejo ao outro. O mesmo cabe para a maternidade, o trabalho, as relações sociais quando se mostram automáticos e compulsórios.

Que 2024 seja um ano repleto de desejo e da assunção de suas consequências!

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