Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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No divã com o analista

Por que o terapeuta não deve transar com paciente?

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O tema das relações amorosas entre pacientes e seus analistas é espinhoso porque nem todos os seguidores de Freud se atentaram à regra da abstinência sexual. A relação entre Carl Jung e Sabina Spielrein, analista e paciente, por exemplo, imortalizada no filme "Um Método Perigoso" (2011), de David Cronenberg, é um exemplo célebre. Ali podemos ver o apelo que Spielrein faz para que Freud a ajude a superar a danosa relação com Jung.

É sabida a reprovação do criador da psicanálise aos analistas que, lisonjeados pela sedução de pacientes, sucumbem à própria vaidade. Ele mesmo, que foi um jovem bonito e atlético, teve que resistir às demandas amorosas de suas jovens pacientes. Freud já tinha presenciado o estrago causado pela confusão que Josef Breuer fez ao atender Bertha Pappenheim, jovem cujo caso é precursor da psicanálise. Breuer não entendeu que a paixão de Anna O., como ficou conhecida, não era exatamente por ele e temeu pelo seu casamento, deixando a paciente na mão. Vale pesquisar a biografia dessa mulher excepcional para saber o que ela fez com esse sofrimento.

Os atores Keira Knightley e Michael Fassbender estão sentados em um banco, de frente um para o outro, e se olham com tensão
Keira Knightley e Michael Fassbender no filme Um Método Perigoso (2011), de David Cronenberg - Reprodução IMDb/Sony Pictures Classics

Nos primórdios da psicanálise ainda não se sabia exatamente tudo que estava em jogo nos tratamentos, mas uma coisa Freud percebeu com clareza. A chave do tratamento estava no fato de que o paciente transferia para a figura do analista suas relações com pessoas essenciais na sua formação, ligadas aos cuidados iniciais.

A transferência, conceito fundamental na clínica, traz para o presente experiências do passado e as atualiza como se estivessem acontecendo agora. Freud também nos alertou para o fato de que a infância passa, porque é cronológica, mas que o infantil é perene, sendo a base do inconsciente.

O analista é eticamente responsável pelo manejo da transferência, cuja função é revelar ao paciente o que se presentifica na sessão. Por isso que a abstinência —sexual, de julgamentos, de atuação— é fundamental para que se cumpra a função analítica. Não estamos lá para responder às demandas do paciente, mas para revelar-lhes oportunamente.

Os anos 1970, com o mantra de que "é proibido proibir", também colocou lenha na fogueira das vaidades, e analistas se permitiram muito mais do que a atual geração, que se revela mais advertida.

Catherine Millot, paciente de Lacan, escreve o delicioso "A Vida com Lacan" para contar sua aventura amorosa com o célebre analista. Ali, uma mulher madura que soube o que fazer com essa experiência, aproveita a chance para revelar um Lacan menos glamuroso. A genialidade não encobre o homem branco afeito a privilégios e histrionismos. Não foram poucos os discípulos que se inspiraram nos tropeços do mestre para justificar seus próprios deslizes.

Fica claro que nem todas as pacientes saem ilesas de tal experiência, na qual a demanda infantil pelo amor das figuras primordiais é confundida, pelo próprio analista, com o desejo por ele. Está aí uma boa encenação do que o sensível Sándor Ferenczi foi capaz de formular usando a expressão "confusão de línguas": quando a demanda por ternura que vem da criança é respondida com a disruptiva sexualidade adulta.

E se coloco as pacientes no feminino é porque não raro esses casos se dão entre homens maduros e suas pacientes jovens, cuja demanda amorosa funciona como elixir da eterna juventude.

A regra de não transar com paciente não diz respeito a qualquer preceito moralizante, mas à própria estrutura do dispositivo analítico.

Em tempos de #metoo, psicanalistas remanescentes do pode-tudo teriam que arranjar outro ofício.

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