Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu yanomami indígenas

Psicanálise, psicodélicos e o vivente

A psicanálise não pode ficar do lado dos vencedores

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O mantra meritocrático diz que o melhor sempre vence. No entanto, a vida mostra que, em geral, vence o mais violento e o menos escrupuloso. A prova é que entre o discurso do homem europeu e o discurso dos povos colonizados venceu, por força de uma violência extrema, o primeiro. O pacto social da competição e da exploração subjugou o pacto da cooperação e do cuidado. Não comungo com a fantasia do bom selvagem puro de coração, mas com o reconhecimento de que se trata de uma visão mais digna e menos mortífera da relação com a vida.

Estão aí a tragédia climática, a disseminação da violência doméstica e urbana e a escandalosa coexistência da extrema concentração de renda com a mais absoluta miséria para provar que as boas novas trazidas pelo homem moderno partiam de pressupostos equivocados. O sujeito da modernidade tem medo de si e do outro, está sempre competindo por uma posição imaginária e buscando formas de controlar e explorar a natureza, seja interna ou externa. Se utilizou a pólvora para eliminar os povos originários, não chegou a perceber que com ela atirava no próprio pé. Ao tentar submeter uma perspectiva de vida riquíssima em busca de ouro e outros bens, negava o discurso que poderia tê-lo salvo da autodestruição.

Paciente durante sessão de psicanálise - Marlene Bergamo - 25.nov.2010/Folhapress

Os "comedores de terra", como Davi Kopenawa, em "A queda do céu" (2015), chama o povo branco, não foram capazes de ver que o verdadeiro bem encontrado nas Américas não estava na fauna ou na flora, mas no modo de entender a relação do ser humano consigo mesmo e com o entorno.

A psicanálise herdou da lógica colonial a pretensão de ter a última palavra sobre o humano, escrutinando os sonhos com a lupa da vigília em busca dos tesouros do inconsciente. Trabalho fascinante e transformador, mas que tem muito a aprender com a relação que outros povos estabelecem com o psiquismo e com o ambiente. Recomendo vivamente a leitura de "O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami" (2022), de Hannah Limulja. Ali vemos o status do sonho em povos que têm a coragem de reconhecer seu lugar na ordem do mundo. Ao contrário do olhar colonizador, ali o ser humano não é tido como um ser superior a dominar a natureza, mas como parte a respeitar suas regras.

Enquanto os povos ameríndios mergulham profundamente em experiências com substâncias psicodélicas que estreitam os laços de sensibilidade e empatia com o vivente, o povo moderno busca na floresta princípios ativos que sirvam para controlar e inibir comportamentos e diminuir a profusão de pensamentos que o invade. "Painkillers" do corpo e da alma, antipsicóticos, antidepressivos e uma variedade interminável de moléculas a serviço de nos ajudar a aguentar o tranco de uma existência cada vez mais sem sentido, ou melhor, cujo sentido aponta inequivocamente para a autodestruição.

A pesquisa com psicodélicos é uma alternativa para os limites dos tratamentos psíquicos atuais e vem vencendo preconceitos, como vimos na recente autorização do uso de MDMA e psilocibina na Austrália para pacientes que sofrem de estresse pós traumático. Mas, para além dessa importante função, a própria experiência com essas substâncias, quando bem administrada e corretamente assistida, nos ajuda a refletir sobre aquilo que nos aparta tão brutalmente de nós mesmos e nos leva à derrocada civilizatória.

Claro está que sua legalização também cairá no moedor de carne do capitalismo. Mas podemos apostar também em um uso que se preste a iluminar o exato ponto no qual perdemos a fé no vivente e optamos por sua dominação e destruição.

A psicanálise, ao rever sua herança colonizadora e europeizada, assume que vencer é abrir mão da sanha capitalista de tudo controlar. A psicanálise tem muito a escutar.

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