Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Mente Todas

Nosso desassossego amoroso

A conjugalidade envolve arranjos pragmáticos, bem distantes da imagem de amor e paixão a que está associada

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Embora se diga que desde a modernidade as relações amorosas se baseiam mais no afeto e no desejo do que na obrigação e na convenção, acaba que elas nunca são puras e desinteressadas. Seria ingenuidade pensar que os relacionamentos se resumem ao que se passa entre o casal, ou ao trisal, se preferirem.

A conjugalidade envolve arranjos pragmáticos, bem distantes da imagem de amor e paixão a que está associada. Mesmo as relações que não são fundadas em razões contábeis não deixam de incluir algum tipo de lastro patrimonial. Pode ser porque se divide um aluguel, a logística com os filhos ou outras formas de atenuar pressões econômicas. Não raro, no cálculo de uma separação, a segurança material pesa. No entanto, ao romper uma relação que era mantida pelo temor de se bancar sozinho, muitas pessoas descobrem um potencial inesperado de se sustentar. Nos vários sentidos da palavra.

mãos negras entrelaçadas
Casal de mãos dadas - Git Stephen Gitau/Pexels

Estar com alguém numa relação duradoura significa, para o bem e para o mal, somar seu círculo social. Passado algum tempo, é de se esperar que a família, os amigos e os colegas de um façam parte da vida do outro. Também pode-se aproveitar a chegada do novo elemento como desculpa para se afastar de contatos anteriores. Numa eventual separação, a perda dos agregados pode pesar tão ou mais do que o fim do relacionamento.

A longevidade das relações também cria paradoxos. Quanto mais tempo juntos, mais íntimos e confortáveis, mas também mais previsíveis e entediados. Relações menos duradouras podem ser mais excitantes e rejuvenescedoras, mas elas não costumam sobreviver a crises que se mostram cruciais para o amadurecimento de ambos.

O pulo do gato, então, seria manter relações longevas que nunca perdessem seu frescor, ou seja, nas quais cada um tem uma vida suficientemente rica para que possam continuar a se surpreender mutuamente. Dessa forma, as crises maturativas que atravessam o relacionamento de tempos em tempos renovariam o apaixonamento pela mesma pessoa ao longo dos anos. Mas o risco de que as transformações de cada um caminhem em sentidos opostos e inconciliáveis está dado em todas as relações, que dirá nas que são inquietas por natureza.

A questão é que, nas coisas do amor, não há pulo do gato. A dificuldade em admiti-lo é o que nos leva, muitas vezes, a uma insatisfação crônica com o que é possível viver ao lado de alguém, seja de maneira longeva ou episódica.

Outro mito que persegue os casais é de que seria possível, e mesmo desejável, encontrar alguém capaz de dar conta de todas as nossas demandas por sexo, intimidade, companheirismo, amizade, troca intelectual, humor, enfim, por tudo que somos capazes de oferecer e receber uns dos outros. A fantasia de ser tudo para o outro só revela como o infantil em nós - nossas aspirações mais toscas —continuam operando na vida adulta.

Na tentativa de encontrar a panaceia das relações, cria-se imperativos que assombram cada geração como a relação aberta, fechada, casal, trisal, morando junto, morando separados… Além do estrago que causa a busca por responder aos imperativos, eles fazem supor que haveria saída para o desencontro humano.

Todas as relações amorosas fracassam em acabar com a solidão, em nos livrar da angústia, em driblar o horror diante do envelhecimento e da morte, em responder à nossa insatisfação estrutural, em nos dizer quem somos. Ainda assim, o amor é a melhor forma de fracassar que inventamos para lidar com tudo isso.

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