Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Wilson Gomes

A iconoclastia preventiva do Xandão

Por temor de adoração futura, críticos atacam preventivamente a imagem do ministro

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Não são poucos os juízos públicos sobre Alexandre de Moraes, figura de destaque desta nossa nova transição democrática. Há quem reconheça que foi um dos campeões da democracia, lança em punho nas tantas justas em que precisou provar o valor da sua causa.

Há também os convencidos de que se trata de um liberticida, pronto a solapar, abusiva e seletivamente, algumas das liberdades básicas que nos garantem o Estado de Direito, a começar pelas liberdades de expressão, manifestação e divergência (quiçá, de insulto) das autoridades constituídas. Há ainda os que reconhecem que foi providencial o papel por ele assumido de xerife da República nas circunstâncias delicadíssimas criadas pelos radicais do bolsonarismo neste período, mas temem que aceitar como normais alguns dos seus comportamentos pode ser um caminho sem volta.

Em um fundo cinza com listras horizontais verdes e amarelas, ilustração de Ariel Severino mostra uma mão, segurando um martelo, batendo em uma escultura quebrada. Tanto o braço, que usa um terno, quanto o martelo e a escultura são desenhados com hachuras. O braço sai do lado direito superior da cena. A escultura está quebrada em duas pilhas maiores, que ocupam a parte central e esquerda da tela, e ambas mostram frações de um rosto. A parte maior, mais à esquerda, aparece num chão de cacos a escultura fragmentada de um leão, tombada para a direita. A parte menor, apoia-se numa antiga esfinge de um cordeiro, também emerge do chão de cacos.
Ilustração de Ariel Severino para a coluna de Wilson Gomes de 7.fev.23 - Ariel Severino

Por fim há os que oscilam entre o aplauso, por reconhecer que sem um zagueiro que não foge das divididas as coisas teriam acabado bem mal, e a reprovação, porque o beque chuta na canela e passa por cima, como se jogasse na várzea, não em um torneio controlado por regras, cerimônias e liturgias.

É compreensível. Fora os bolsonaristas, todos entendem a importância do ministro Moraes, do TSE e do STF, nos anos de radicalização do bolsonarismo, inclusive durante a eclosão da tentativa de golpe no infame 8 de Janeiro. Amemos ou não a cúpula do Poder Judiciário, ela foi a última linha de zaga da democracia brasileira contra um bolsonarismo incansável no seu desejo autocrático. O resto são divergências compreensíveis de filosofia e visão de mundo, completamente identificáveis no campo democrático.

Independentemente, contudo, do juízo que se faça sobre Alexandre de Moraes há uma atitude que me incomoda bastante, que vou chamar de "iconoclastia preventiva". É um tipo de ação corretiva voltada para mitigar efeitos negativos e futuros de um fato presente. Parece complicado, mas não é.

Um exemplo. Godard fez um filme com uma versão moderna da Concepção de Maria; católicos imaginaram que pessoas que fossem assistir ao filme sairiam com uma imagem deturpada de Nossa Senhora. Eles não viram o filme nem conheciam qualquer pessoa em que o filme tivesse produzido tal efeito, mas estavam convencidos de que isso iria acontecer. Então, tomaram a providência de fazer grandes manifestações em frente aos cinemas, de acionar a Justiça para impedir a sua exibição e de atacar a figura do cineasta, por sacrilégio. Tecnicamente, lutaram para evitar uma influência presumida e projetada, não constatada.

Assim, pessoas que imaginam que os outros estão idolatrando alguém, ou irão idolatrá-lo no futuro, tomam providências para corrigir tal coisa. Fazem posts, declarações e artigos para revelar aos incautos que o suposto ídolo tem os pés de barro.

No fundo é uma espécie de sinalização de virtude, dessas que os partidários adoram, uma vez que confirma, para eles, o quão moralmente superiores são.

Um exemplo clássico foram os ataques a Joaquim Barbosa depois do julgamento do Mensalão, quando a muitos parecia que um novo herói político nacional estava sendo forjado no STF.

Um exemplo tosco foi quando César Benjamin, aqui na Folha, resolveu contar, do nada, "os podres" de Lula com um garoto nos 30 dias em que fora detido durante a ditadura. Diante do clamor e perplexidade gerais, Benjamin explicou a razão da revelação: era para evitar preventivamente uma presumida onda de idolatria, que, ele imaginava, surgiria depois do filme hagiográfico "Lula, O Filho do Brasil " (de que ninguém mais se lembra, aliás). Ação corretiva.

Dispensa-se a Alexandre de Moraes o mesmo tratamento. Remexendo-se nas memórias, ativam-se registros desabonadores à esquerda e à direita que provariam que o Xandão, cuja menção é suficiente para fazer bater em retiradas falanges de golpistas, não é isso tudo o que se diz. E que fora das circunstâncias que justificam o "vigiar e punir" continua sendo um delegado da roça.

Enquanto isso, anarcoliberais e bolsonaristas projetam um trevoso futuro em que o sombrio Batman do STF passa por cima de liberdades e direitos como se nada fossem. Iconoclastia preventiva, sim.

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