Um juiz do STF em quem o presidente possa confiar, um para representar o Nordeste e o Norte, uma juíza negra, dois juízes para os LGBTQIA+, na razão de um para os LGB e outro para o resto da sigla, que não demora muito e isso termina em secessão.
Já temos um juiz terrivelmente evangélico e outro terrivelmente leal ao bolsonarismo, quiçá não seria o caso de termos um ferozmente lulista e outro absurdamente liberal? Um juiz garantista, um abolicionista penal, outro sincrético. Um juiz decolonialista, uma juíza interseccional... E será que já não está na hora de um juiz negro e periférico?
Foi pela época do julgamento do mensalão que o brasileiro comum botou na cabeça que juiz da Suprema Corte é fundamental para se ganhar jogos, exatamente como no futebol, como bem o sabem corintianos e flamenguistas. E que, portanto, o negócio é ter um juiz para chamar de seu. Aliás, quanto mais juízes que "nos representem", melhor, pois representar passou a significar algo como fazer advocacia dos nossos interesses, da nossa identidade ou das nossas preferências políticas.
Como o centro do ativismo político hoje consiste em militar por representação, exige-se implicitamente um princípio de cotas que obrigue o STF a ter a cara do mundo como o vejo. Se sou um identitário progressista, todos os grupos historicamente oprimidos precisam ter representantes na Suprema Corte; se sou identitário de direita, quero que o Tribunal seja o reflexo do Brasil profundo negado pela esquerda e pelos progressistas, isto é, conservador, tradicionalista e cristão.
Há uma premissa inquietante por trás de tanta reivindicação: as decisões judiciais são orientadas basicamente por um critério que cada juiz torna pertinente. Uns juízes decidiriam com base na fidelidade a quem os indicou, enquanto os votos dos outros decorreriam diretamente da sua identidade de gênero, raça, origem, classe social: um juiz negro vota como negro, um juiz branco julga como branco, tertium non datur.
Amarras objetivas e positivas como o texto constitucional, precedentes hermenêuticos, doutrinas testadas no campo jurídico, os votos apresentados por outros membros do colegiado, o esclarecimento recíproco em sessões deliberativas, tudo isso seria secundário, assim como estaria em terceiro plano a própria consciência moral do juiz.
Só um juiz terrivelmente evangélico ou uma juíza negra entende certas coisas e tomaria certas decisões. Não há justiça possível, então, se todas as orientações sexuais, cores de pele, identidades de gênero, regiões geográficas, credos e tipos de corpos não forem representados, dando-se preferência, claro, aos habitualmente preteridos.
Essa mesma premissa, enunciada candidamente na esfera pública nos momentos em que há vaga para se contratar um novo juiz, é usada para atacar as decisões da corte, quando a hora do conflito político se apresenta. A decisão que não nos agrada tampouco nos surpreende, pois, afinal, o que se podia esperar de um colegiado dominado por homens brancos, cis, héteros, colonialistas, burgueses, ricos, do Sudeste, com cargo vitalício e salários astronômicos? Ou de um bando de esquerdistas, escolhidos a dedo por Lula e Dilma, globalistas, progressistas, nem tementes a Deus nem eleitos pelo povo brasileiro?
Novamente, é hora do lobby, e há dois times em campo pressionando Lula. De um lado, o time da representatividade identitária. Para estes, só haverá uma escolha digna se uma pessoa "heteroidentificada" como apta representante de uma minoria for endossada pelo presidente. "Mulher negra", p. ex., é a escolha óbvia do Zeitgeist. De outro lado, o time da fidelidade luta para que Lula tenha aprendido a lição da história e escolha um juiz usando o mesmo critério de Bolsonaro, isto é, leal e fiel à mão que o indicou, mesmo que à custa da própria imagem e reputação. Neste caso, "o advogado de Lula" parece a melhor aposta.
O curioso nisso tudo é que quando Bolsonaro anunciou que indicaria juízes segundo os dois critérios em disputa —um para representar os evangélicos conservadores, os dois por fidelidade a ele—, a todos pareceu chocante que juízes do STF fossem escolhidos por parâmetros tão pouco republicanos.
Palavras como "competência", "honestidade" e "fidelidade à Constituição" foram arregimentadas para condenar tal heresia. Pelo jeito, o que é feio nos outros é feio justamente porque nos outros; em nós, ao contrário, até que assenta bem.
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