Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Wilson Gomes

A esquerda autoriza o 'ódio do bem', enquanto se queixa do ódio dos maus

Como pode reivindicar ser mais democrático quem demostra diariamente a brutalidade do seu autoritarismo

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Dentre as sugestões para uma agenda da esquerda em 2024, faço questão de incluir a necessidade de desautorizar o "ódio do bem". Pois é justamente neste quesito que a esquerda e os progressistas perdem a prerrogativa da superioridade moral que tanto reivindicam sobre os seus adversários.

"Ódio do bem" é obviamente uma expressão irônica para designar o ódio quando a sua fonte são pessoas que reivindicam uma posição moral superior. O ódio, em seu sentido político, é fundamentalmente o sentimento intenso de aversão ou hostilidade em relação a um grupo, ideologia ou pessoa.

Embora não seja possível controlar sentimentos, é crucial intervir, no caso do ódio, quando esse sentimento aflora em atitudes ou comportamentos, tanto individuais quanto coletivos. Isso inclui a expressão pública de aversão e desprezo por determinados alvos, assim como interações sociais que oprimem e degradam os outros. Por isso se fala em "crimes de ódio" e "discursos de ódio", no âmbito propriamente jurídico, e em promoção e disseminação de ódio, em âmbito político.

Todo grupo com uma posição política almeja ter superioridade sobre posições opostas ou adversárias. No entanto, essa superioridade é avaliada considerando a amplitude da força mobilizada, a habilidade na articulação, e a capacidade de comunicação com a sociedade, grupos de interesse ou simplesmente com o eleitorado.

A ilustração de Ariel Severino tem como essência a frase “ódio do bem” (que o colunista menciona no título e duas vezes no texto). Sobre fundo em tom ocre coberto por uma trama de pontos que passam a sensação de perspectiva, entre o plano do teto (acima) e o plano do piso (embaixo). Duas cabeças, uma delas apoiada no piso e uma espelhada da anterior, virada e apoiada no teto. Vários detalhes se replicam. As cabeças estão olhando para frente, para o espectador, trabalhadas com texturas e sombras, com o céu da testa totalmente plano, onde aparece um interruptor na posição “desligado”. É como se as dividíssemos pelo meio na vertical, do lado esquerdo o olho fechado, do lado direito aberto. A boca, do lado esquerdo esboça um sorriso, do lado direito mostra os dentes e um gesto de desgosto. Outros dois detalhes significativos, do lado esquerdo surgindo da nuca, uma haste com um alo quebrado ao meio em forma de meio círculo, do lado direito um grande chifre e orelha de animal.  Num mesmo individuo, o bem e o mal estampado na face…
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 17 de janeiro de 2024 - Folhapress

Ao longo dos anos, as esquerdas penaram, em regimes democráticos ou autoritários, justamente por não ter os meios para prevalecer nas disputas. Por isso, sempre insistiram em outra forma de superioridade, relacionada a um sistema de valores morais, a começar pelo valor da igualdade entre todas as pessoas.

A igualdade é moralmente superior à desigualdade, à injustiça, à iniquidade; a busca por mais igualdade é moralmente superior à mera luta por interesses.

Por isso, a esquerda igualitária pode até não vencer cada batalha, mas possuiria um dote moral em maior quantidade que a direita anti-igualitária. Eis sua superioridade moral e a raiz da convicção na própria legitimidade. Esse sentimento, claro, pode não passar de uma crença, mas certamente foi eficaz e faz parte de sua identidade.

Como afirmou de maneira perspicaz um comunista italiano da velha guarda, a questão reside no fato de que a superioridade moral não é um legado genético tampouco um traço antropológico exclusivo da esquerda. E certamente não é uma dádiva divina ou uma qualidade concedida automaticamente com o "kit do bom militante". Ela precisa ser provada em cada atitude, segundo regras válidas para todos.

No entanto, é evidente que a esquerda se transformou em uma extraordinária força devotada ao ódio. Perdeu o pudor de expressar publicamente aversão e desprezo a pessoas e grupos que detesta ou a opiniões que não tolera. Um mero adjetivo como "fascista" ou "racista" afasta qualquer escrúpulo. E a base moral do julgamento é sempre autorreferente: os nossos são bons porque são nossos, o outro lado é ruim porque é o outro lado. E o inferno, como se sabe, são sempre os outros.

Nas interações sociais, especialmente em ambientes digitais, insultos, cancelamentos, exposições, agressões diretas e humilhações públicas se tornaram tão frequentes que impossibilitam distinguir os brutos da esquerda e os trogloditas da direita. Houve uma época em que se podia alegar que o ódio era mais copioso do lado direito que do lado esquerdo; hoje, não mais.

A esquerda autoriza o "ódio do bem", enquanto se queixa do ódio dos maus. Todo santo dia, o seu Colégio Cardinalício emite milhares de indulgências plenárias e fornece um milhão de justificativas, sempre recorrendo ao manancial inesgotável de autocomplacência com "os oprimidos".

São fornecidos álibis inquestionáveis, como a ideia de que só existe ódio de cima para baixo e de que uma ação só é imoral se for "estrutural". No limite, minimiza-se o ato, alegando-se que o eventual "ódio do bem" não tem o condão de provocar um dano semelhante ao cotidiano e disseminado ódio dos maus.

É um odiozinho de nada.

Essa autoindulgência desmoraliza o argumento da superioridade moral. Como pode reivindicar ser mais democrático quem demostra diariamente a brutalidade do seu autoritarismo e o seu gosto por calar os divergentes através de humilhações, insultos e violência? Para quem o recebe no lombo, não importa o quanto quem estala o chicote se considere bom, justo e moralmente superior segundo a própria escala de virtudes. A mão que desfere a chibatada é, invariavelmente, do mal.

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