Yascha Mounk

Cientista social, é professor associado na Universidade Johns Hopkins e autor de "O Povo contra a Democracia".

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Yascha Mounk

Vivo há 15 anos nos EUA, e país nunca me pareceu tão dividido

Até americanos que encaram Trump com bons olhos estão fartos de suas provocações racistas

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Nas ruas, centenas de milhares de americanos protestam contra a persistência insuportável da violência policial. A partir do porão da Casa Branca, cercado por uma barreira erguida às pressas para protegê-lo dos manifestantes, Donald Trump atiça as chamas do caos.

Enquanto policiais espancam manifestantes pacíficos e protestos pacíficos se convertem em tumultos, a impressão que se tem às vezes é que estamos nos aproximando do fim do grandioso experimento americano de autogovernança.

Que unidade de propósitos e que sentimento de solidariedade entre compatriotas podem restar em um país que abrange tantas diferenças e tanta revolta?

Caixão de George Floyd é levado para seu velório em Houston, no Texas - Goran Tomasevic - 8.jun.2020/Reuters

Felizmente, quando se trata das opiniões e dos hábitos reais dos cidadãos comuns, esse quadro desanimador é excessivamente simplista. O povo americano está longe de tão dividido quanto levam a crer as imagens chocantes difundidas nas redes sociais.

Questionados se Derek Chauvin, o policial que matou George Floyd, deve ser indiciado por homicídio, nada menos que 89% dos americanos concordaram.

Se pesquisadores perguntassem às pessoas nos Estados Unidos (ou na França, por exemplo) se gostam dos Beatles ou acham cachorrinhos simpáticos, dificilmente encontrariam um nível semelhante de consenso.

A mesma pesquisa conteve outra informação reveladora. A maioria dos americanos desaprova como Donald Trump vem lidando com uma série de questões, desde a Covid-19 até a imigração; se a eleição fosse hoje, ele sofreria uma derrota esmagadora.

Mas o mais notável é que os americanos desaprovaram ainda mais o modo como Trump lida com a única questão que supostamente o ajuda a ganhar eleições: as “relações raciais”. Ao que tudo indica, até alguns americanos que geralmente encaram Trump com bons olhos estão fartos de suas provocações racistas.

O clima reinante entre afro-americanos também está um pouco diferente de como frequentemente é retratado pela mídia. Por exemplo, há poucos indícios de que eles encarem o país como sendo fundamentalmente ilegítimo ou que desejem transformações muito radicais.

Afinal, é graças ao apoio avassalador que Joe Biden tem entre os eleitores que um democrata moderado como ele, em vez de um autodeclarado revolucionário como Bernie Sanders, vai enfrentar Trump em novembro.

Essa moderação também tem sido visível nos trágicos dias recentes. Enquanto uma maioria enorme dos afro-americanos está justamente revoltada com a persistência do tratamento desigual que recebe da polícia, uma parcela quase igual se opõe com firmeza a tumultos ou saques.

Assim, não constitui surpresa que líderes comunitários, desde prefeitos como Keisha Lance Bottoms até rappers como Killer Mike, venham lançando apelos aos manifestantes para conservarem o caráter pacífico dos protestos.

Mas, se o povo americano é sob muitos aspectos mais sensato e compassivo do que sugerem as imagens distópicas dos últimos dias, a elite política e jornalística está fazendo o que pode para dividir o país.

Os principais culpados são, é claro, o presidente, seus aliados políticos e a enorme câmara de eco que eles agora comandam.

A incapacidade absoluta de Trump de expressar —ou, provavelmente, de sentir— qualquer compaixão genuína pela morte de George Floyd não é menos chocante por ser tão normal para este presidente.

E, embora políticos republicanos frequentemente se queixem de Trump, falando reservadamente, virtualmente todos eles voltaram a priorizar sua carreira política em detrimento de seus princípios, continuando a defender seu presidente.

Enquanto isso, alguns de meus amigos e conhecidos posicionados do lado da história que eu acredito firmemente ser o correto estão sendo “trumpificados” aos poucos, eles próprios. Uma revista para a qual eu escrevia acaba de publicar uma defesa acirrada de protestos violentos.

Um político de muito alto nível que conheço sugeriu, sem prova nenhuma, que os tumultos teriam sido instigados por agentes provocadores russos.

E, porque Trump está cinicamente atacando organizações de extrema esquerda, quase nenhum jornalista se dispõe a reconhecer que algumas delas de fato glorificam a violência de maneira inaceitável.

Esta é a América de 2020. A maioria das pessoas normais, brancas e negras, liberais e conservadoras, reconhece tanto que este país ainda sofre de injustiça racial profunda quanto que ele avançou muito nos últimos 50 anos.

Não obstante suas muitas divergências, elas continuam determinadas a construir um futuro melhor juntas.

Ao mesmo tempo, uma parcela crescente da elite, negra e especialmente branca, conservadora mas também liberal, está desistindo do experimento americano.

A única coisa sobre a qual essas elites conseguem concordar é que o país está podre, o inimigo é irredimível e qualquer coisa menos que uma vitória total representa um caminho certeiro para o inferno.

A grande pergunta agora é quem vai prevalecer nesta disputa entre narrativas. O ódio recíproco que as elites americanas sentem umas pelas outras vai contaminar os pontos de vista dos cidadãos comuns?

Ou a tolerância mútua da maioria das pessoas comuns vai forçar as elites a atenuar sua hostilidade recíproca? Até algumas semanas atrás, eu sentia confiança razoável em que a “vox populi” acabaria por prevalecer, mas fica mais difícil conservar essa esperança a cada dia que passa.

Tradução de Clara Allain 

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