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A intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro pode dar certo?

Ação precisará combater problemas estruturais que vão de falta de policiais a corrupção

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Marcos Lisboa Leandro Piquet Carneiro

A intervenção federal no Rio de Janeiro é a primeira sob a regência da Constituição de 1988. As polícias Civil e Militar, os bombeiros e o sistema prisional do Estado ficam sob a responsabilidade direta de um general do Exército, que responderá diretamente ao Presidente da República e recebeu a difícil missão de "pôr termo a grave comprometimento da ordem pública no Estado" em apenas dez meses.

Há muita incerteza sobre como isso será feito, dada a falta de anúncio das medidas operacionais e de gestão que serão adotadas pelo interventor. Há muito a fazer e a maioria das ações passa por uma gestão básica da política de segurança, além da revisão de práticas que resultam em uma polícia tão cara quanto imune ao combate de regras ineficientes ou de condutas inaceitáveis. 

A presença de tropas federais na segurança policial, porém, não é um fato novo. A experiência de outros países que passaram por processos semelhantes de crise e de reestruturação do sistema de segurança pública indica a existência de riscos que ameaçam a capacidade de a intervenção controlar o problema.

 

Lições importantes podem ser aprendidas com os casos da Georgia, Colômbia e mesmo com países muito mais pobres e com instituições muito mais frágeis do que o Brasil e o Rio de Janeiro, como Honduras.

Primeiro, há o risco de a intervenção não avançar com a depuração das polícias e a reestruturação dos serviços de policiamento na velocidade e profundidade esperadas pela população. O patrulhamento ostensivo no Rio é claramente deficiente. 

Em 2014, a Polícia Militar do Estado contava com um efetivo de 43.538 policiais para o trabalho de rua. Desse contingente, apenas 60% estavam disponíveis para o policiamento, já que 2.155 estavam cedidos a outros órgãos, 3.436 não estavam aptos para o serviço de policiamento por razões de saúde e 10.100 policiais estavam dedicados a atividades meio na própria polícia. Férias e afastamentos diversos consumiam 1.600 policiais. Se considerarmos ainda o turno padrão de 24h de trabalho por 72h de folga, os 26.247 policiais aptos para o policiamento são transformados em apenas 6.560 por dia para todo o Estado. 

Além disso, as regras atuais da PM resultam em aposentadorias relativamente precoces, em média aos 50 anos de idade. O resultado é que a folha de pagamentos da Polícia Militar do Rio ultrapassou R$ 12 bilhões em 2017, quando se considera o total de salários, pensões e aposentadorias.

A crise fiscal agravou o quadro. Desde 2015, o Estado não paga mais o adicional para PMs trabalharem em dias de folga (Regime Adicional de Serviço —RAS) e, desde 2016, as premiações por desempenho foram cortadas.

O número de policiais militares caiu 7% desde 2015. As viaturas estão sem contrato de manutenção e cerca de metade da frota está parada. 

Muitos contratos de fornecedores e prestação de serviços estão periodicamente ameaçados de falta de pagamentos, mesmo de serviços essenciais como limpeza de IML, comida de policiais e sistema de informação. Isso requer que os chefes das polícias gastem um tempo considerável correndo atrás de recursos para cumprir o pagamento. O Rio viveu um completo colapso fiscal em 2017, com graves consequências sobre a política de segurança.

Outro problema que afeta diretamente a qualidade do policiamento no Rio de Janeiro é o absenteísmo dos tenentes e capitães na supervisão dos policiais que fazem o trabalho de rua, o qual passa a ser comandado, na prática, por sargentos.

Como muitas promoções são realizadas por antiguidade, e não por mérito, a proporção de oficiais superiores (coronel, tenente coronel e major) é muito maior do que o necessário. Sobram coronéis nos gabinetes em meio à falta de capitães e tenentes para organizar e supervisionar os serviços de policiamento.

O segundo grande risco à intervenção está relacionado ao processo, muitas vezes iniciado e nunca concluído, de reestruturação da Polícia Militar do Estado, o epicentro da crise. O Comandante Geral não tem poder nem meios para determinar o funcionamento dos batalhões. Não há padronização de procedimentos, de abordagens nem de treinamento, podendo variar dependendo do contexto do bairro onde são realizados. A Polícia Militar de São Paulo, que contrasta com a fluminense nesse aspecto, poderia servir de modelo.

A reestruturação da Polícia Militar do Rio requer ainda a depuração dos policiais envolvidos com a corrupção e a violência contra a população, com ações de inteligência para identificar comportamentos indevidos, processando criminalmente os mais perigosos e desligando os que não têm condições de desempenhar bem suas funções.

Novos policiais devem ser formados e mantidos distantes das práticas inadequadas dos mais velhos. O contingente que regularmente deixa as Forças Armadas pode ser aproveitado e treinado para substituir os agentes expurgados, principalmente aqueles vindos das unidades de elite, como nos EUA. O turno 24 por 72 precisa ser revisto. 

Por fim, a intervenção deve derrotar o controle do crime organizado e das milícias sobre populosas áreas do Rio. É preciso aposentar as incursões típicas de contrainsurgência, celebrizadas pelo Bope, em nome de um policiamento agressivo, combinado com o de proximidade onde for cabível, como fazem a Rota e a Força Tática em São Paulo. Nada disso existe na PM do Rio. Em dez meses, não dá para construir. Em cinco anos, talvez.

Nesse contexto de adversidade, deve-se proteger as estruturas internas da Secretaria de Segurança que produzem as estatísticas criminais. Sem informações confiáveis, como as que hoje o Instituto de Segurança Pública produz, e sem organizações independentes monitorando as ações das polícias e das Forças Armadas, será difícil formar uma coalizão estável e majoritária na sociedade em apoio à intervenção.

A sociedade está dividida e muitos são abertamente hostis à intervenção. As críticas devem ser tratadas com respeito quase reverencial, ao invés de cinismos —o Ministro do Interior da Argentina dizia que não publicava estatísticas criminais porque, se as notícias eram ruins, todos o criticavam, e se eram boas, todos diziam que estava mentindo. 

Sem cinismos e sem atalhos, será preciso coragem e qualidade de gestão para enfrentar as balas dos criminosos, a reestruturação da Polícia Militar, corrupção e malfeitos daqueles que deveriam nos proteger, além da hostilidade de quem se está a servir.

Marcos Lisboa, 53, economista, é presidente do Insper e colunista da Folha Leandro Piquet Carneiro, 53, é professor do Instituto de Relações Internacionais da USP

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