Degradado, 'falso' casarão do marquês de Paranaguá vai a leilão no centro de SP

Família de arquiteto descobre vínculo com imóvel hoje nas mãos do INSS

casa tombada em meio a árvores

Casa Tombada no Bairro da Consolação localizada na Rua Marquês de Paranaguá 124 será leiloada Katia Kuwabara/Folhapress

Francesca Angiolillo
São Paulo

​No alto da elevação, que se vence por uma escada cuja graça ainda se adivinha sob as folhas secas, está a casa. Por causa do nome da rua, ela é às vezes chamada de “casa do marquês de Paranaguá”.

Mas, na verdade, é a casa de Mario Tavares, o primeiro. O quinto, e último, assina Mario Tavares Moura Filho e só recentemente, por acaso, descobriu o vínculo que o une ao casarão na esquina com a rua Visconde de Ouro Preto que será leiloado com outros 25 imóveis de propriedade do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), nesta quarta-feira (19).

“Você é Mario Tavares? Mas você é quem? É o pai, filho, neto, avô?”, indagou, no começo do ano passado, uma conhecida, amiga da família de sua mulher.“ Seu avô morava nessa esquina”, disse dona Celinha, dispensando os rigores da genealogia —o dono, conforme se confirmaria mais tarde, era tataravô do rapaz.

Dona Celinha crescera naquela rua. “Provavelmente ela brincou com a minha avó, tinham a mesma idade”, calcula Mario Moura. A avó era Marisa, neta do primeiro Mario Tavares, com quem Moura, hoje com 34 anos, foi morar ao se mudar de Botucatu para São Paulo, a fim de estudar arquitetura.

Mais tarde, já vivendo por conta própria, começou a namorar uma moça que frequentava um clube localizado na rua Visconde de Ouro Preto. “Pois é, eu morei lá, na esquina com a Marquês de Paranaguá”, disse a avó, ao saber dos novos passeios do neto.

Moura conta que não procurou se aprofundar sobre a antiga casa da avó, que morreu em 2014. Até a conversa com dona Celinha. Ele dedicou-se então, em abril do ano passado, a reconstruir a história da casa, a começar por descobrir quando ela fora construída.

A tarefa inicial foi difícil. Pesquisou, no Arquivo Histórico Municipal, toda a documentação da rua Marquês de Paranaguá entre 1915 e 1927. Isso até dar com a casa de seus antepassados na travessa Augusta, número 8.

Esse era o endereço registrado no pedido de autorização para construir encaminhado por Mario Tavares à prefeitura, em 1912 —só mais tarde naquele mesmo ano a rua ganharia o nome atual, segundo o livro “Consolação: Uma Reportagem Histórica”, de Clovis de Athayde Jorge.

No Conpresp, órgão municipal de preservação do patrimônio, Moura obteve toda a documentação referente ao tombamento da casa. O processo, cujo primeiro documento data de 1985, se estende até 2002, data em que o órgão estabelece também a área envoltória do imóvel, que deve ser protegida e que engloba até o futuro parque Augusta, a algumas quadras dali. 

O processo se acelerou em 1º de setembro de 1993, a partir de um abaixo-assinado firmado por 18 pessoas alarmadas. No documento, eles diziam ter sido informados por seguranças no local de que o INSS levaria o imóvel a leilão e temiam sua iminente destruição.

Foi solicitado um parecer com urgência, que pediu a abertura do tombamento —o que se deu, conforme registra o "Diário Oficial do Município", em 9 de outubro de 1993. O INSS tentou revertê-lo. Em ofício ao Conpresp, diz que a recuperação da casa era “praticamente inviável em função do alto custo” e que não existiam “recursos financeiros para a restauração do prédio” ou “possibilidade de aproveitamento do imóvel para uso operacional do instituto”.

Até hoje, não houve nem recursos nem uso para a casa, um entre os mais de 5.800 imóveis que o órgão previdenciário possui e que geram custos, mas não benefícios.

Quando Mario Moura soube que a casa pertencia ao INSS, pensou que nada aconteceria. “Até que há duas, três semanas, a Maria, minha esposa, voltando do clube, me manda uma foto da faixa do leilão.”

Desde então, diz, pensa diariamente em que destino a casa poderia ter. “À medida que eu fui fazendo essa pesquisa, fiquei com uma sensação meio estranha, assim, como se isso estivesse caindo no meu colo por algum motivo.”

Considerou procurar um investidor, mas o prazo era curto para pensar um plano que a tornasse um negócio rentável.

O estado atual da casa é de fato bastante sofrível, e o restauro, certamente, consumiria muito além dos R$ 3,182 milhões que correspondem a seu lance mínimo no leilão.

Infiltrações, que já apareciam nos primeiros pareceres do Conpresp, destruíram o forro e, em alguns pontos, pode-se ver o térreo através do piso do pavimento superior.

Vestígios nas paredes dão conta da ocupação irregular que a casa teve nos anos 2000, após ter sido por quase dez anos sede da União Brasileira de Escritores —a entidade até iniciou reparos mas, não podendo receber o imóvel em doação, como pretendia, desocupou-o em 2004.

Uma grande figueira estende raízes e galhos muito perto de uma das laterais da casa. Já nos anos 1990, como também registrou o Conpresp, a árvore se insinuava pelo telhado sobre a parte de serviço, que se encontra hoje descoberta.

A árvore é tombada, tanto quanto a casa de 400 m², os arrimos, o muro, o gradil e toda a demais vegetação do jardim do lote de 1.250 m².

Se, descrito em palavras o cenário pode parecer desolador, ao vivo, é preciso que se diga, os anos de ruína não tiraram o encanto da casa.

Ela ainda surpreende o visitante com o que restou de seu vitral e de sua caixilharia, com suas janelas e varandas que se projetam sobre o jardim e com as pinturas art-nouveau que o tempo não alcançou destruir por completo.

Mario Moura diz que “gostaria, claro, de participar” do novo destino da casa. “Mas, acima de tudo, o que eu queria era que o imóvel tivesse sua função social restabelecida, que esses anos de abandono pudessem resultar em alguma coisa, que ele voltasse a fazer parte do cotidiano.”

 


Transferência do direito de construir

O que é
É um instrumento legal previsto desde 1984 e ampliado pelo Plano Diretor de 2014. Visa tornar imóveis tombados que precisam de restauro mais atraentes para investidores 

Como funciona
A Transferência do Direito de Construir (TDC) pode ser adquirida de proprietários de bens tombados por outros, que queiram ampliar o potencial construtivo de um terreno

Passo a passo

Venda
O proprietário do imóvel protegido tem direito a vender o potencial construtivo do seu terreno, que não poderá utilizar para construir, por causa do tombamento; ele pode vender todo o potencial do imóvel cedente para um ou vários imóveis receptores

Cálculo
O potencial é calculado multiplicando-se a área do terreno pelo coeficiente de aproveitamento básico da região onde está o imóvel cedente, que hoje é 1 para toda a cidade

Acréscimo
Imóveis cedentes de até 500 m² têm um acréscimo de 20% no seu potencial construtivo; já os lotes com mais de 50 mil m² podem transferir apenas 10% de sua superfície

Autorização
Para usar a TDC, o bem tombado precisa da anuência do Conpresp, que determina diferentes procedimentos segundo o grau de conservação do imóvel. Se estiver bem conservado, recebe um atestado de conservação; se não, é firmado um termo de compromisso que vincula a TDC ao restauro e conservação do bem tombado

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