Dividir a vida com lápides de cemitério é rotina em bairro pobre na Grande SP

Cerca de 700 famílias precisam passar pela área para chegar ao bairro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ana Beatriz Felicio Ariane Costa Gomes
São Paulo

​Em uma casa construída com pedaços de madeira, Adriano Cleber da Silva, 33, mora há cerca de 13 anos com a esposa e quatro filhos. Recém-casado e sem condições de pagar aluguel, mudou-se para lá em 2005, no terreno que hoje abriga a comunidade Parque dos Girassóis, em Osasco, na Grande São Paulo.

Ali, estima-se, que morem cerca de 700 famílias como a de Adriano —em casas simples, muitas delas improvisadas com restos de materiais de construção e a poucos metros de...túmulos.     

A comunidade não é só vizinha de um cemitério, ela está parcialmente dentro de um. Para chegar e sair do Parque dos Girassóis, muitos moradores passam pelo terreno cheio de jazigos. Ver pessoas atravessando a área é tão comum quanto crianças correndo e brincando no local.  ​

Segundo a prefeitura, por ser uma área de difícil acesso, o cadastro social realizado em 2011 está desatualizado e o número de famílias morando no local é ainda maior.

“As famílias usam o cemitério como local de passagem, lazer e até estacionamento para carros. É muita gente que mora na área de defesa do cemitério”,diz o auxiliar administrativo Fábio Bezerra, 20.

Com muros derrubados, é difícil identificar onde termina o cemitério e começa a comunidade. “[Quando me mudei] não sabia que era perto do cemitério. Quando cheguei, o último barraco era o meu. O lado de lá era só mato. Hoje cresceu”, conta Adriano, que soube do terreno por meio do irmão, e que atualmente faz “bicos” em um depósito de materiais de construção.

As crianças usam o cemitério como área de lazer e brincam descalços entre as lápides. Há grupos de garotos que jogam futebol e famílias passeiam com os cachorros e caminham pelo local com sacolas de mercado. Há até piquenique no espaço, segundo moradores. “Não é muito bom, mas fazer o quê? É o que tem”, desabafa José Nilton, 40, pai de três filhos.

Futebol e pipa são as brincadeiras preferidas de Ryan, 11, e seus amigos. “Gosto de morar aqui, de ter amigo para brincar”, conta o garoto, um dos filhos de Adriano.   

Em maio, um incêndio atingiu a comunidade, aparentemente por problemas na fiação elétrica. Ninguém se feriu, mas algumas famílias perderam suas casas. 

Segundo a Prefeitura de Osasco, foi o segundo caso registrado no terreno, que também pertence a uma empresa privada. Em 2015, quando houve um deslizamento. Na ocasião do incêndio, houve um processo de remoção parcial da favela por parte da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano da cidade.

A prefeitura alega que a população do bairro será removida e reassentada em conjuntos habitacionais. Um deles chamado “Minha Casa Minha Vida Conjunto Miguel Costa”, deve abrigar cerca de 200 famílias e está previsto para ter início das entregas em dezembro deste ano em Quitaúna a 7 km dos Girassóis, também em Osasco.

As demais famílias serão encaminhadas para habitações que estão em fase de captação de recursos. A gestão diz que serão analisadas caso a caso e poderão ter acesso ao programa Bolsa Aluguel (R$ 300) pelo período de até 18 meses.

Enquanto aguardam, os moradores têm receio de investir nas residências. “Rola muita coisa, ninguém tem certeza de nada. A gente quer mesmo é saber se vão tirar ou não”, conta José Nilton. “Se for tirar, não vamos gastar, porque se formos construir aqui vamos gastar muito. Aí gastamos e vem e derrubam tudo”, diz.

Eles se queixam não ter tido reunião com representantes da secretaria de habitação neste ano. A energia elétrica é puxada dos postes do início da comunidade.

Alguns barracos já possuem água, mas para aquelas onde o recurso não chegou, é necessário que se utilize a água do próprio cemitério. A solução foi improvisar cerca de 400 metros de mangueira.

No entanto, já houve casos em que a mangueira foi cortada por pessoas que passam pelo cemitério, deixando as casas sem água. 

“A mangueira que a gente usa é dessas pretas de plástico. Quando estoura nós temos que arrumar rápido porque às vezes acaba entrando barro dentro. Pode entrar algum bicho e a gente não ver”, comenta Adriano.

Quando chove os moradores precisam lidar com outro problema: os alagamentos. Maria Elza da Silva, 55, desempregada, conta que já perdeu móveis diversas vezes devido a chuva. “Na minha porta mesmo ninguém entra porque a água que desce do cemitério vai parar toda lá”, avalia aposentada que vive há 10 anos no local.

O terreno do Parque dos Girassóis fica em um declive e a comunidade cresceu justamente na extremidade dessa descida. “Quando eu precisava sair para trabalhar e sabia que ia chover, meu corpo ia, mas minha cabeça ficava, porque sabia que iria perder tudo. A gente trabalha e luta para ter as nossas coisas e ver a água levar assim não é fácil. Eu queria muito poder mudar daqui”, diz.

A CUIDADORA DE CARROS

Para as crianças que frequentam o cemitério Parque dos Girassóis, nem tudo é brincadeira. Há algumas que também trabalham. Ao perceberem a aproximação de um carro, correm para oferecer ajuda para o plantio ou carregamento de flores. Em troca, recebem algumas moedas dos visitantes.

Uma dessas crianças é Roberta (nome fictício), 8. Tímida, mas com sorriso largo, ela mora próximo às lápides, e trabalha no cemitério aos fins de semana cuidando do carro das pessoas. “Eu não tenho medo de trabalhar em cemitério”, comenta. “Morto já foi vivo, ué, porque teria medo?”.

Ela revela que gosta de trabalhar no cemitério para poder ter dinheiro e ajudar a mãe que, além dela, tem mais seis filhos. Durante a semana, ela estuda e trabalha aos sábados, domingos e feriados, chegando cedinho e saindo por volta das 16h. “Gosto de trabalhar aqui e poder comprar presentes para minha mãe.
Mas não gosto muito de onde moro, porque tem muitas brigas”.

Enquanto olha o carro de um casal de idosos que foi visitar uma das lápides, senta na guia sob uma árvore. “Quando eu crescer quero ser policial. Vou poder cuidar não só dos carros, mas da minha mãe e das outras pessoas também”, conta.

INDENIZAÇÕES

Até março de 1990, a administração do cemitério Parque dos Girassóis era da Flamboyant Comercial Agropecuária Ltda. Recentemente, a empresa fez um acordo com o Ministério Público e se comprometeu a pagar mais de R$ 39 milhões por ter vendido cerca de 5.000 jazigos a pessoas sem nunca entregá-los.

Os interessados terão um ano para se habilitarem no processo, por meio de advogado, para receberem indenização de R$ 7.815 por jazigo comprado e não entregue.

Sob responsabilidade da prefeitura de Osasco, atualmente o local tem entulho em diversos pontos, tumbas abertas, além de grama alta e problemas no asfalto.

De acordo com Antenor Batista de Souza, 68, que trabalha na manutenção elétrica do cemitério, só há iluminação na parte administrativa, na capela e velório, localizados na entrada. “O velório funciona 24 horas e mesmo de madrugada, nunca fiquei sabendo de nenhum problema”, conta Bezerra, que trabalha há dois anos no cemitério.

QUESTÃO AMBIENTAL

De acordo com Ednilson Viana, professor de Gestão Ambiental na Universidade de São Paulo, fatores como as condições do solo precisam ser analisados para saber se as famílias correm riscos. No entanto, ele comenta que a situação é preocupante.

“Há diversos estudos na área que dizem que os cemitérios são uma atividade poluidora. A própria Cetesb reconhece os cemitérios como tal, por isso exige um licenciamento obrigatório”, afirma. “Quando você aproxima muito uma residência a um cemitério você está colocando esses moradores cada vez mais próximo de uma fonte poluidora”.

Termo ainda discutido por especialistas e não reconhecido por todos ambientalistas, o necrochorume é um líquido gerado na decomposição do cadáver e pode estar presente em algumas regiões de cemitério.

“A forma como uma pessoa veio a óbito pode tornar a degradação ou o líquido gerado na decomposição mais poluidor ou mais perigoso”, avalia Viana.

“A contaminação poderia ocorrer por meio do contato dérmico; por ingestão da água do solo potencialmente contaminada e por volatilização. Mas dependendo da forma como esse cemitério foi construído não há muita possibilidade de ter essa contaminação”, avalia Camila Camolesi, pesquisadora assistente no laboratório de resíduos e áreas contaminadas do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas).
 
A prefeitura de Osasco disse que não há informações sobre contaminação da substância no cemitério e na comunidade. “A questão dos cemitérios no Brasil é um assunto pouco tratado. O ideal seria fazer um estudo para verificar se essa área do cemitério apresenta alguma contaminação a partir dessa atividade no solo e na água subterrânea”, pondera Camila.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.