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Palhaços entretêm crianças em fóruns de SP e quebram rigidez do Judiciário

Projeto, inspirado nos Doutores da Alegria, é realizado em dois fóruns em São Paulo

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São Paulo

Após 26 anos de trabalho com os Doutores da Alegria, trupe de palhaços que entretém crianças e adolescentes em hospitais, a atriz Soraya Saíde, 58, sentiu que era hora de expandir a iniciativa para outro lugar pouco convidativo: o Poder Judiciário. 

Teve o estalo ao ler uma reportagem publicada neste ano pelo UOL sobre a juíza Tatiane Moreira, hoje titular da vara da violência doméstica e familiar contra a mulher do Fórum de São Miguel Paulista, distrito na zona leste de São Paulo. 

A magistrada relatou ao site de notícias que atendia todos os dias jovens vítimas de agressão, inclusive sexual, e o quanto era duro ter que lidar com os casos. Na ocasião, Moreira trabalhava no Fórum da Barra Funda, na zona oeste da capital.  

Saíde e outra atriz, também dos Doutores da Alegria, Roberta Calza, 40, convidaram Moreira para uma conversa por meio de um email. “Imaginei que ela nem fosse ler”, conta Saíde. Deu certo. Em 1° de agosto, começaram o projeto Palhaços Sem Juízo no Fórum da Barra Funda. 

O objetivo da iniciativa é humanizar o ambiente árido e sisudo do Judiciário ao levar arte e uma dose de leveza para os fóruns. E tentar traduzir, de forma lúdica, os espaços jurídicos para os pequenos para que se sintam acolhidos. 

As crianças são o foco, sejam vítimas de abusos, testemunhas ou só acompanhantes dos pais. Mas os adultos também entram na brincadeira, desde vigias até promotores. 

“O hospital e o Judiciário são mundos paralelos. A autoridade do juiz é muito semelhante à do médico. Os dois decidem sobre a liberdade e sobre a vida de uma pessoa”, diz Moreira.

O projeto acompanhou a juíza quando foi transferida para São Miguel Paulista, mas continua na Barra Funda. Pelo primeiro fórum, passam cerca de 10 mil pessoas por dia. No segundo, em torno de 30 mil. Outros dois atores também participam do projeto, ex-alunos da escola dos Doutores da Alegria: Victor Mendes, 31, e Gabriella Lois, 44. 

Saíde e Mendes —ou melhor, Sirena e Tobias, nomes de seus personagens— foram a dupla da última quinta (26) no Fórum de São Miguel Paulista. A equipe vai uma vez por semana em cada fórum. “É uma boa medida, senão enjoam do palhaço”, diz Saíde. A Folha acompanhou os dois durante a tarde. 

Costumam chegar por volta das 14h e saem no fim do expediente, lá pelas 18h. “É um ambiente muito formal, não humanizado. As paredes são cinza, o teto é cinza, os corredores são longos”, afirma Moreira. “As crianças podem achar que vão encontrar um dinossauro, mas nunca um palhaço ali.” 

Os “assistentes da juíza”, como os palhaços se descrevem, começam a circular pelo fórum. Nicolas, 5, acompanha a família —uma tia é testemunha de um processo— sentado em um banco no corredor. O semblante entediado é substituído por um olhar desconfiado quando os palhaços se aproximam.

Os atores pedem para sentar no banco. Mas, onde quer que sentem, parece estar quebrado (o som de rangido vem de uma pequena buzina que apertam). Pedem para o menino testar. Nada de barulho. Ele cai na gargalhada. 

“Achei interessante. Já tinha visto nos hospitais. Anima o ambiente. Ele se divertiu bastante”, diz uma das tias de Nicolas, a costureira Mirtes de Abreu. 

Carimbos, pastas, canetas, martelinhos e mini xícaras de café compõem o acervo de itens que os palhaços usam nas brincadeiras. “A gente brinca com a questão da burocracia do lugar e de tudo o que imaginamos ser um fórum”, explica Saíde. 

Dali, são chamados para a sala de um funcionário do fórum. “Quero tirar foto com vocês. Gosto de palhaço”, diz o homem, antes de fazer uma selfie. Algum tempo depois, outra funcionária aborda os dois no corredor para uma foto. “Vocês são de onde?”, questiona. “Amei vocês. Posso colocar a foto na minha página do Face?”

Nem todos são tão receptivos. Já ouviram “shhh” de um funcionário incomodado com o barulho. Alguns advogados no caminho não dão muita confiança. 

“Palhaço é chato, né? Vai devagarzinho, quebrando. Tem que ser suave”, diz a palhaça, lembrando que, quando os Doutores da Alegria começaram, também havia resistência. “Eles amaciaram o caminho em hospitais. Leva tempo para pessoas entenderem o foco do trabalho.”

Antes de começar o projeto, para evitar desgastes, a juíza pediu autorização ao Tribunal de Justiça e apresentou os atores a funcionários do fórum. “Eles dão uma chance. E depois todo mundo acaba, pelo menos na minha percepção, se surpreendendo”, diz Moreira. 

No fim expediente, a dupla de palhaços faz um relatório sobre o dia e o entrega à juíza. 

Os atores desejam ampliar a equipe do projeto e chegar a outros fóruns do país. Para isso, pretendem buscar apoio por meio de leis de incentivo —hoje, as intervenções são feitas de forma voluntária. 

O Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania era um dos lugares do fórum com mais crianças na tarde de quinta. Entre elas, Barbara Yasmin, de 7 meses, e Melissa, de 8 anos. A mãe da bebê, Rosangela Costa, acompanhava uma amiga em processo de separação. Diz que os atores trazem leveza ao lugar: “Achei legal que eles entretêm as crianças em um ambiente pesado.” 

Brincar com crianças em um lugar que trata de assuntos como violência doméstica, violação sexual e divórcio exige alguns cuidados. Os atores não perguntam, por exemplo, o motivo que levou a criança até o fórum. “O tema é, geralmente, muito pesado. Esse trabalho é para os juízes e assistentes de verdade”, diz a juíza. 

No dia 15 de outubro, para celebrar o Dia das Crianças, haverá um cortejo musical no fórum na zona leste, com violão e cantoria. Uma “parada musical forense”, descrevem, em referência ao termo jurídico. “É o que dizia o escritor argentino Ernesto Sábato: ‘Nós, adultos, de algo sempre somos culpados. Mas as crianças, que culpa podem ter as crianças?’”, questiona Saíde.

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