Berço espiritual de João de Deus em Goiás, Abadiânia vira cidade-fantasma após prisão

Visitantes que chegavam a 2.000 em dia de atendimento hoje não passam de 150; comércio sofre

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Abadiânia (GO)

Onde antes se viam turistas de branco, há ruas vazias, placas de vende-se e pousadas fechadas. Um ano após emergirem denúncias de abuso sexual contra o médium João Teixeira de Faria, o João de Deus, 77, a cidade escolhida por ele em 1976 para abrigar seu hospital espiritual lembra uma vila abandonada.

De cerca de 80 pousadas em Abadiânia (GO), a reportagem encontrou apenas sete abertas e em funcionamento. Em algumas delas, empregados dizem que isso ocorre só em parte da semana, ou quando há visitantes programados —cada vez mais raros.

O valor das diárias, que antes chegava a R$ 200, oscila hoje entre R$ 50 e R$ 110. Nas ruas, no lugar dos cartazes que anunciavam terapias ou traziam mensagens a turistas, placas de “vende-se” e “aluga-se”, algumas decoradas com símbolos religiosos ou escritas também em outros idiomas. É comum ver espaços comerciais completamente vazios ou rodeados de mato.

O prefeito José Aparecido Diniz (PP) diz estimar que 1.200 empregos tenham sido extintos ao longo de um ano. Com isso, a taxa de desemprego da cidade passou de 10% para 20%.

Segundo ele, a situação só não ficou mais visível porque parte de quem trabalhava no local se mudou para outras cidades, e a prefeitura compensou a perda de receitas com o início da cobrança de IPTU em regiões próximas a um lago. 

“Não tivemos dificuldades financeiras, mas ainda precisamos batalhar na questão do emprego”, afirma ele. “Aqui se ganhava muito dinheiro. Agora, acabou a festa”, resume Norberto Kirst, dono de uma pousada na região e um dos voluntários da Casa Dom Inácio de Loyola, espécie de hospital espiritual mantido por João de Deus.

Ele diz acreditar que turistas e fiéis ainda devem continuar a ir ao local. “É uma cidade abençoada.”

Nem todos pensam assim. O dono de uma pousada que não quis ser identificado conta que chegou a esperar pela retomada do movimento. Desistiu. Colocou uma placa de venda em português, alemão e francês.

Comerciantes que restaram estimam que o movimento caiu em torno de 70%. Antes, a avenida que levava ao centro criado por João de Deus era tomada por lanchonetes e lojas de cristais, artesanatos e roupas brancas. Agora, a reportagem contou mais de 12 delas fechadas. Quem resistiu faz planos de migrar para o lado não turístico da cidade.

O receio de falar do tema é comum entre comerciantes. O volume de denúncias abalou a imagem do médium antes venerado e temido por lá. “Não apoio o João de Deus, mas também não sou neutro”, afirma um deles.

As primeiras denúncias surgiram no dia 7 de dezembro de 2018, no programa Conversa com Bial, da TV Globo. Na ocasião, 13 mulheres disseram ter sido vítimas de João de Deus durante atendimento individual pelo médium. Os relatos levaram outras a denunciar. 

O Ministério Público de Goiás diz ter recebido 350 relatos de abuso sexual. Os primeiros são de 1973, os últimos, de 2018. Houve 13 denúncias encaminhadas à Justiça.

Nesta semana, a Justiça de Goiás condenou João de Deus a 19 anos e 4 meses de prisão, em regime fechado, por crimes sexuais —a primeira condenação por esse motivo. Em novembro, outra condenação já havia ocorrido, mas por posse ilegal de arma de fogo.

Nos últimos meses, o médium permaneceu no Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia. Ele nega as acusações. Em nota divulgada na quinta (19), a defesa de João de Deus disse que vai recorrer e pleitear prisão em regime domiciliar em razão do estado de saúde do médium.

A situação reforçou uma espécie de lei do silêncio que parece vigorar na cidade. Também afugentou turistas e mudou a rotina da Casa Dom Inácio de Loyola, onde João de Deus fazia seus atendimentos —e onde, segundo os relatos, ocorreram os abusos.

Funcionários dizem que o número de voluntários, que já chegou a mais de 50, hoje soma apenas 15. Enquanto isso, visitantes têm sido mais raros.

Na quarta-feira (18), onde antes se viam filas, a maioria das cadeiras estava vazia. Em uma sala decorada com quadros de santos, presentes para o médium e cartazes de silêncio, três voluntários aguardavam fiéis para o primeiro dia da semana marcado para os atendimentos espirituais. O relógio marcava poucos minutos para as 8h. Mas quase não havia frequentadores por lá.

Há pouco mais de um ano, eram esperadas para um dia como esse cerca de 2.000 pessoas. Atualmente, esse número não passa de 150, dizem. Em alguns dias, nem isso. Na quarta, cerca de 30 pessoas aguardavam pelo atendimentos. Não houve a necessidade de se formar fila.

Hoje, no lugar da cadeira onde ficava João de Deus, há uma imagem de Santa Rita de Cássia segurando uma cruz. Do lado de fora, os poucos visitantes remanescentes dizem ter vindo não pelo médium, mas para fazer uma oração na sala às entidades —os espíritos que ele dizia incorporar.

“É complicado entender um caso desses. É uma coisa que mexe com todas nós por sermos mulheres. Diante de tantos relatos, não é possível que todas estejam mentindo”, diz a biomédica Conceição Moreira, 45. “Mas acabei vindo pela casa e pela entidade que me curou”, afirma.

Após visitar a casa pela primeira vez há três anos e experimentar melhora das dores decorrentes de uma hérnia, ela aproveitou uma viagem para Anápolis durante a semana para voltar. Ao todo, já fez oito visitas, afirma.

“Estou feliz por estar aqui, mas triste por não ver mais aquela procissão de branco. As pessoas vão na igreja por Deus ou pelo padre que reza a missa?”, questiona.

Para a inglesa Chiara Carcianiga, 55, que visita Abadiânia desde 2011, a situação é uma “oportunidade de desenvolvimento espiritual”. Na quarta, ela era uma das poucas turistas sentadas nos bancos que ficam em frente às pousadas.

“É verdade que a cidade está vazia, mas são fases. Tenho certeza de que esse lugar vai voltar a ser um centro espiritual. Tem fases da vida em que a gente fica pobre de novo, e isso faz parte da nossa experiência.”

Colaborou Fábio Fabrini

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