Mulheres coagidas a traficar drogas vivem como zumbis no Brasil

Muitas das 'mulas' que levam substâncias em voos internacionais são vítimas de tráfico de pessoas

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Fabio Teixeira
São Paulo | Fundação Thomson Reuters

Helena lutava para sustentar seu filho de seis anos no arquipélago africano de São Tomé e Príncipe quando lhe foi oferecida uma oportunidade de trabalho como cozinheira no Brasil. Ela chegou ao país em fevereiro de 2018 com a esperança de começar uma vida nova, mas foi forçada a engolir cocaína para contrabandear para a África, presa no aeroporto internacional de Guarulhos e sentenciada a cinco anos de prisão.

 

“Achei que tudo tinha acabado para mim”, disse Helena, 26, que por medo de represálias se recusou a informar seu nome real. Ela agarrava sua bolsa, na qual tinha um documento legal afirmando que fora libertada da prisão, para evitar ser detida novamente.

“Você se sente como a pior criminosa do mundo. ‘Para quê um lixo como você vem para cá? Por que não fica no seu próprio país?’, me disseram. Eu quis responder, mas como eram policiais, fiquei em silêncio”, ela disse à Thomson Reuters Foundation.

Drogas apreendidas pela Polícia Federal no Aeroporto de Guarulhos (SP) em 2017
Drogas apreendidas pela Polícia Federal no Aeroporto de Guarulhos (SP) em 2017 - Polícia Federal/Divulgação

As pessoas em situação de escravidão no Brasil de hoje geralmente trabalham na criação de gado, colheita do café ou para madeireiras, mas as autoridades encaram a exploração de pessoas para uso no tráfico de drogas como um problema crescente, diante do influxo de migrantes pobres das vizinhas Venezuela e Bolívia.

Segundo dados da polícia, metade das cerca de 300 mulas de drogas detidas todos os anos no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, são mulheres.

Helena é uma entre dezenas de mulheres migrantes no Brasil que a ONG Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) acredita que foram encarceradas injustamente por tráfico de drogas, já que eram vítimas de tráfico de pessoas que foram forçadas a cometer o crime.

É uma ligação que o Brasil prometeu estudar em seu Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, em 2018. Em 2016 já haviam sido adotadas penalidades mais duras para o crime.

O ITTC estima que 12% das 365 mulheres migrantes que estavam contrabandeando drogas e às quais prestou assistência desde 2016 podem ser vítimas de tráfico humano, e não criminosas, com chances de ser libertadas se tiverem uma apelação deferida.

A África do Sul é a nacionalidade de origem mais comum das vítimas potenciais, seguida pela Venezuela e  pela Bolívia.

Os números reais provavelmente são mais altos e é provavel que subam ainda mais em função do aumento no número de imigrantes em situação vulnerável, segundo o ITTC, que ajuda mulheres encarceradas a entrar em contato com suas famílias e as encaminha para abrigos quando são libertadas.

“Com o agravamento das condições nos países vizinhos, por exemplo na Venezuela, a tendência é de que o tráfico de pessoas aumente”, comentou a advogada Carolina Vieira, do ITTC, que ajuda mulheres libertas da prisão a conseguirem documentos legais necessários, como cartões da Previdência Social.

Pequenas fábricas brasileiras que pagam pouco aos empregados e os mantêm em condições de trabalho insalubres atraem trabalhadores de países latino-americanos mais pobres. Os salários, maiores que em seus países de origem, permitem aos migrantes sustentar suas famílias em seus países. O número de trabalhadores migrantes desse tipo cresceu vertiginosamente devido à crise política e econômica na Venezuela.

COAÇÃO

Segundo dados obtidos pelo jornal O Globo graças à Lei de Acesso à Informação, cerca de 5.000 pessoas foram presas por tráfico de drogas nos aeroportos brasileiros nos últimos dez anos.

As sentenças impostas geralmente variam de 5 a 15 anos de prisão.

Especialistas do ITTC e defensores públicos dizem que dezenas de mulheres como Helena são coagidas a contrabandear drogas depois de serem atraídas para o Brasil com falsas promessas de emprego e então mantidas presas em apartamentos quando chegam ao país, com seus passaportes confiscados.

Algumas mulheres concordaram em transportar drogas depois de ser ameaçadas ou terem suas famílias ameaçadas. Outras pensaram estar transportando doces ou calçados, mas descobriram que as bagagens que lhes foram dadas para levar continham drogas escondidas no forro, segundo Vieira, do ITTC.

“Para que um juiz entenda que houve tráfico de pessoas, é preciso haver provas muito convincentes”, disse a defensora pública Nara Rivitti, que representa mulheres migrantes encarceradas.

“É muito difícil apresentar provas de tráfico de pessoas.”

O caso da sul-africana Amanda se enquadra nessa área cinzenta. Ela concordou originalmente em contrabandear drogas entre seu país e o Brasil em 2013, em troca de um passaporte.

Amanda pensou que tinha sido um acordo válido para só uma viagem. Quando recebeu ordem de fazer tudo de novo, ela recusou. Então foi sequestrada.

“Me levaram para outro lugar e todos os seis me estupraram”, contou Amanda, que se negou a informar seu nome real. “Daquele momento em diante eu simplesmente continuei com tudo. Me falaram que aquilo não era nada comparado ao que me aconteceria se eu fugisse.”

Com medo das ameaças feitas à sua família, durante dois anos Amanda contrabandeou drogas em aviões, em sua bagagem ou presas a seu corpo. Mas à medida que os carimbos em seu passaporte foram aumentando de número, as autoridades da alfândega começaram a desconfiar.

Em 2015 ela foi presa em Guarulhos –e agradeceu ao policial que a deteve.

“Foi um alívio tremendo”, contou Amanda, libertada em 2018 depois de cumprir dois anos e oito meses de prisão, um pouco menos de metade da sentença. Com medo de ser morta se retornar à África do Sul, ela sobrevive fazendo trabalhos avulsos no Brasil.

O defensor público João Chaves, especializado em migração, diz que estrangeiros condenados devem ser deportados quando são soltos da prisão, mas que as deportações raramente são realizadas por falta de verbas para pagar pelas passagens.

O resultado mais comum é uma vida passada no limbo: os migrantes permanecem no Brasil, mas sem direito legal de permanência. Isso limita seu acesso a empregos, saúde e moradia, disse Chaves.

"As pessoas viram ‘zumbis legais’”, ele comentou. “Foram legalmente expulsas do país, mas continuam fisicamente presentes aqui.”

Helena, de São Tomé e Príncipe, foi solta alguns meses atrás, depois de cumprir 17 meses de prisão, e hoje está trabalhando como garçonete.

Ela não tem os R$ 3.000 da passagem de volta a seu país, de modo que torce para ser deportada.

Sua família passou mais de um ano depois de sua prisão sem ter ideia do paradeiro de Helena, até o ITTC entrar em contato para lhe dar notícias.

“Eu tinha sumido”, ela disse, contando que seu pai morreu pouco depois de ela ter falado com ele –usando um celular trazido irregularmente para dentro da prisão por outra detenta— de um AVC que ela acredita ter sido precipitado pelo trauma.

“Quero voltar, quero ver meu filho e minha mãe. Nunca antes passei tanto tempo longe de minha família.”

Tradução de Clara Allain

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