População se une em tragédia e dona de bar organiza comida enquanto busca irmã

Moradores resistem a sair de áreas de risco mesmo após alerta da Defesa Civil

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Guarujá (SP)

"Reconheci minha sobrinha ontem. Estou esperando notícia da minha irmã e do meu cunhado. Tenho fé que vamos encontrar pelo menos os corpos. A esperança é a última que morre", diz Renata Silva, 42, enquanto organiza em seu bar doações que chegam às vítimas das chuvas que assolaram a Baixada Santista na madrugada de terça (3).

Renata é tia de Jhenifer Nunes, 25, cujo corpo foi encontrado na terça na Barreira João Guarda, no Guarujá (SP), e aguarda notícias da irmã Jeane Nunes e do cunhado José Ivanildo, que estão desaparecidos.

A família morava no alto do morro, em uma casa de alvenaria que foi construída recentemente por ser mais segura que o barracão onde viviam antes —e onde a própria Renata morou anos atrás, antes de de mudar para uma parte mais baixa.

"O sonho de todos nós é morar num lugar mais seguro, claro, mas nunca imaginamos que isso poderia acontecer. Ela construiu uma casa com laje e tudo. Foi uma tragédia."

O local tem recebido desde a tragédia caixas e caixas de comida e água, além de dezenas de voluntários, mesmo de outros bairros. "Moro aqui há 25 anos, nunca vi nada assim. É preciso ser solidário nessas horas, só quem já perdeu alguém sabe. Veio gente de longe para ajudar", diz Maria da Conceição Reis, 51, que distribuía água e cachorro quente aos bombeiros, policiais, voluntários, moradores e jornalistas que estavam na região na manhã desta quarta (4).

Com ela estava Fernanda Alves, 34, que passou o dia anterior ajudando a tirar a água da casa da mãe, que ficou alagada. "Nunca imaginei que passaria por isso."

Dezenas de pessoas se dispuseram a enfiar o pé na lama para ajudar a encontrar corpos, alguns mais preparados, com galochas, outros de primeira viagem, com calçados simples.

Os mais preparados eram os moradores da região. "Não queriam me deixar entrar aqui hoje, mas eu e qualquer um aqui conhecemos no mínimos três acessos diferentes pra onde você quiser chegar aqui", diz Rafael Soares, 22, que conta que ajudou dezenas de pessoas desde a noite da chuva.

Militares organizam os voluntários em turnos de uma hora de trabalho e duas de descanso. Mas moradores como Rafael burlam a regra e sobem o morro por outros acessos. "Quem é daqui tá trabalhando sem parar, não tem descanso, não."

Thiago Teixeira, líder comunitário a região, é um deles. Ele vive na parte urbanizada do bairro, abaixo do morro, e acordou na madrugada com ligações avisando que a chuva intensa poderia causar estragos. Pensou no filho de sete anos que vive barreira acima com a mãe, ex-mulher de Thiago.

"Quando estava chegando, ouvi o estrondo a terra cedendo. A sorte é que a lama pegou a casa da minha ex-mulher, de madeirite, de modo lateral, e não derrubou tudo de uma vez, foi aos poucos. Encontrei meu filho com lama até o umbigo", diz ele.

A criança quebrou a perna e está internada. A família de sua ex-mulher também se machucou, mas ninguém morreu.

Os dias de Thiago agora se revezam entre o hospital e o morro, onde trabalha desde o dia a chuva com um grupo de bombeiros voluntários. Ele diz que seu grupo já conseguiu encontrar três corpos.

Rafael Soares vive ao pé do morro com a mulher e a filha pequena, e foram para um abrigo a pedido da prefeitura, mas pensa em voltar para casa. "Não tenho como ficar em abrigo. A prefeitura disse que pode me dar um auxílio aluguel de R$ 200. Eu ganho um salário mínimo, vou alugar onde com esse dinheiro?", diz.

Seu pai, Jorge Sobral, 50, afirma o mesmo. "Não tenho para onde ir. Abrigo em colégio não vou, se precisar sair vou procurar algum parente. Onde eu moro não é bem área de risco, não tem necessidade de sair." Jorge é um que faltou ao trabalho mesmo à revelia do chefe para ajudar nas buscas.

Para Renata, do bar, o motivo de não sair é por segurança. "Não vou deixar meu bar sozinho aqui, sem ninguém, porque roubam tudo. Disseram que já roubaram algumas casas ali em cima, no meio dessa tragédia toda. Não, daqui eu não saio", afirma.

O sol que apareceu nesta quarta e elevou a temperatura para 27⁰C ajudou a secar um pouco da lama, mas os pés e pernas de todos na região ainda estavam cobertos de barro.

Bem abastecidos de comida, os moradores dizem que precisam, acima de tudo, de um grande refletor e lanternas. Eles estão sem energia elétrica e sem água desde a tragédia. A doação serviria para que pudessem trabalhar mesmo durante a madrugada, quando, sem luz, os bombeiros vão embora.

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